segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Marcos Nobre: Terror e Política

• Um movimento político para suspender o verdadeiro debate

- Valor Econômico

Assim como toda a série de atentados dos últimos quatorze anos, também os ataques de 13 de novembro em Paris e em Saint Denis se reivindicam do 11 de setembro. As medidas de segurança e de controle tomadas desde então tornaram virtualmente impossível repetir algo das mesmas proporções da derrubada das Torres Gêmeas e do ataque ao Pentágono. A estratégia passou a ser reviver o momento de terror de 2001 como episódio inaugural de autoafirmação de um velho novo inimigo global.

O objetivo primordial dos atentados de Paris é manter a posição de inimigo global conquistada. É bem-vinda toda e qualquer caricatura que colabore para isso. A mais recorrente é a que diz se tratar de um projeto antimoderno de espalhar à força pelo mundo um modo de vida tradicional ligado a uma interpretação regressiva da religião. Pouco importa que esse inimigo seja um arquipélago de médios, pequenos e minúsculos grupos que não se entendem entre si, sem qualquer unidade ideológica consistente. Pouco importa lembrar que lançam mão em seus ataques de tudo de que podem dispor de tecnologicamente mais avançado.

Por não ter e não pretender ter território nem Estado, a posição de inimigo global depende também de uma declaração oficial de guerra. Foi o que fez George W. Bush como presidente dos EUA, em 2001. Foi o gesto repetido pelo primeiro-ministro francês, Manuel Valls, em 2015. O velho novo inimigo global conseguiu ver decretado o estado de emergência na França. Isso tinha acontecido pela última vez em 1961, durante a Guerra da Argélia. A França restabeleceu controle de fronteiras em um espaço europeu que tinha abolido essa prática. Em outras palavras, deu uma resposta nacional a uma ameaça global.

Pode soar estranho afirmar que o inimigo global não pretende se estabelecer em um território nem se constituir em Estado, já que um dos nomes de guerra que recebeu foi justamente "Estado Islâmico". Mas não se trata de um Estado nem é reconhecido como "islâmico" pelas cerca de um bilhão e meio de pessoas que se declaram praticantes do Islamismo em todo o mundo, a maior parte delas na Ásia e não no Oriente Médio ou na África. Aliás, um dos grandes méritos do ministro das Relações Exteriores da França, Laurent Fabius, foi o de ter proposto, em 2014, o banimento da expressão, por julgá-la ofensiva ao Islã e por não se tratar de um Estado. A partir desse momento, o governo francês passou a usar o nome "Daesh", utilizado pelos inimigos árabes do velho novo inimigo global. A declaração de guerra de anteontem foi mais um passo atrás nesse movimento.

As atrocidades históricas cometidas pelas potências imperialistas no Oriente Médio e em outros lugares do planeta forneceram e continuam a fornecer o combustível que move o velho novo inimigo global. Suas raízes mais imediatas estão na Guerra Fria, em grupos de combate que recebiam recursos, financiamento e treinamento dos EUA contra a União Soviética. Ou vice-versa, conforme a necessidade, as circunstâncias e os interesses. Com a queda do Muro de Berlim, viram-se subitamente sem sustento nem propósito imediato.

Na década de 1990, lutaram para sobreviver. E lutaram entre si pela liderança dos escombros da Guerra Fria. Mesmo os acordos de não-agressão mútua que estabelecem são sempre frágeis e provisórios. Alguns dos ensaios mais visíveis da tentativa de conquistar a posição de inimigo global foram o atentado ao World Trade Center em 1993 e a série de oito atentados em solo francês em 1995, dos quais o mais letal foi o praticado na estação de Saint Michel, em Paris. Conquistou a posição pretendida com os atentados de 2001 em solo dos EUA, de uma dimensão e alcance inéditos.

Após o 11 de setembro, entretanto, fechou-se o cerco às movimentações financeiras mundiais que sustentavam suas ações. Com controles cada vez mais rígidos, foi necessário procurar fontes mais locais e mais diretas de financiamento. Resgates obtidos mediante sequestro não bastam para isso. Daí que o território controlado pelo novo inimigo global siga também o traçado dos campos de produção e exploração de petróleo. E isso não apenas em partes do Iraque ou da Síria. O esquema se repete na Líbia, na Nigéria, no Chade.

O velho novo inimigo global só se importa com territórios na medida em que isso for necessário para seu financiamento e para sua sobrevivência operacional. Sua lógica não é territorial, muito menos nacionalista. Seu lugar é a rede. Mas infla sua própria importância ser identificado ao Islã e ganhar o selo de Estado. Usa esse nome como usava e usa Al-Qaeda (em suas diferentes franquias) ou Al-Shabab, Boko Haram, Talibã. O novo inimigo global tem muitos nomes e muitas caras. Desde que lhe seja conveniente, não recusa nenhuma máscara. Adapta-se a cada momento àquela que lhe garanta na posição de inimigo. A preferida atende pelo nome de "Choque de Civilizações". Mas aceita qualquer estereótipo que identifique religião e terrorismo. O importante é aparecer como maior do que é. O importante é aparecer como representante de uma religião, de uma etnia, de uma enorme comunidade. E provocar ódio e desejo de eliminação.

O velho novo inimigo global é um movimento político de baixíssimo teor político. Mas é um movimento político. Nasceu de sucata da Guerra Fria, reciclada para acompanhar a globalização em seu rastro de pobreza, desigualdade e violência. Sua unidade está na posição de inimigo que ocupa e que pretende continuar ocupando. O fundo comum ao arquipélago de grupos que usa a mesma máscara do inimigo global está no seu modo de operar e não em uma cartilha ideológica qualquer. Atinge seu objetivo quando consegue despolitizar suas ações. Aposta sempre na suspensão da reflexão. Quanto menos complexas e quanto mais simplistas forem as explicações, tanto mais fácil se torna manter a posição de odiado a ser eliminado. É um movimento político que tem por objetivo suspender o autêntico debate político. Não há dor de perda de vida humana que possa receber consolo ou compensação. É com isso que conta o velho novo inimigo global.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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