- Valor Econômico
• A lenda entrou nos autos sem deixar a política
"Alguém tem dúvida de que se não fosse minha atuação teria havido processo de impeachment? Alguém tem dúvida de que se eu não houvesse autorizado, teria havido impeachment? Alguém tem dúvida de que se eu não tivesse conduzido a votação, teria havido impeachment? Alguém tem alguma dúvida disso aqui nesta Casa? Duvido, duvido que a tenham!"
O repetitivo e dramático apelo do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) durante seu último pronunciamento da tribuna da Câmara, há 40 dias, lhe rendeu apenas dez votos. Uma explicação possível é que os parlamentares já haviam precificado a prisão. Grande parte da ampla base de apoio ao governo Michel Temer teme uma eventual delação premiada do ex-parlamentar, mas se o processo judicial tem desdobramentos imprevisíveis, a condenação eleitoral de uma omissão viria a galope nas urnas. Dos resultados eleitorais em Rio Bonito e Itaboraí, principais redutos fluminenses do ex-deputado, à hostilidade da população em relação ao ex-deputado, não parece haver dúvida de que Eduardo Cunha já estava, de fato, condenado.
É mais ou menos esta mesma lógica que guia as atitudes do governo congressual de Michel Temer em relação a Eduardo Cunha. O presidente assumiu sem gordura que lhe permitisse queimar popularidade com uma atitude mais ostensiva de apoio além da acolhida dada ao antigo aliado numa noite de domingo no Palácio do Jaburu, quando Cunha já havia se afastado da Presidência da Câmara.
Não parece haver dúvidas, no entanto, de que a prisão de Cunha revira o tacho de um governo que começava a realizar as tarefas a que se propôs. Quem melhor resumiu a situação de Temer foi o senador Romero Jucá diante do gravador oculto do ex-presidente da Transpetro, Sergio Machado.
Jucá: "Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria".
Machado: "Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer]".
Jucá: "Só o Renan [Calheiros] que está contra essa [...]. Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto".
Na explicação mais benevolente para o diálogo, ao dizer que "Michel Temer é Eduardo Cunha" Jucá quis situar a reação do presidente do Senado, Renan Calheiros, frente a um Temer defensor da bancada dos deputados nas sempre tensas relações destes com os senadores do partido.
Na leitura mais pessimista para o presidente da República, a associação deriva de sua eventual participação no rol de beneficiários das atividades de Eduardo Cunha, resumidas no despacho do juiz Sergio Moro em lavagem de dinheiro, corrupção e evasão fraudulenta de divisas.
As chances de Temer preservar pontes na sua relação com Cunha estavam concentradas na sobrevivência do grupo político do ex-deputado. Como este foi seriamente afetado pela eleição de Rodrigo Maia à presidência da Casa, escassearam-se as moedas de troca na relação. Nas entrevistas que concedeu desde que deixou a Câmara, Cunha não poupou, em on e em off, o ministro de Temer a quem mais diretamente associa o resultado da mesa da Câmara, Moreira Franco. O secretário do Programa de Parcerias e Investimentos do governo é alvo de delações premiadas que supostamente o envolvem em propina da Odebrecht na presidência da Infraero.
Temer e Cunha usufruíram das relações estreitas entre o presidente de partido o seu líder na Câmara dos Deputados, numa legenda congressual como o PMDB. O ex-deputado passaria a se ver como o maior credor da posição que hoje seu antigo aliado ocupa, mas já não tem como se valer disso.
Não é visível o que perderia com uma delação premiada, mas em seu despacho, o juiz Sergio Moro indicou o que a Lava-Jato teria a ganhar: "Esse [o poder de Eduardo Cunha] não foi totalmente esvaziado, desconhecendo-se até o momento a total extensão das atividades criminais do ex-parlamentar e a sua rede de influência".
No pronunciamento que marcou sua despedida da Câmara, Cunha exibiu, em tom de ameaça, sua intimidade com o processo da Lava-Jato: "Vocês não estão me julgando, vocês estão me condenando. Nenhum de vocês conhece uma peça de um processo que tem 7 mil páginas. Nenhum conhece!".
Ao deixar solta a mulher de Cunha, a jornalista Cláudia Cruz, o juiz Sergio Moro forneceu ao processo uma das armas mais poderosas para levar Cunha a antecipar à Lava-Jato o conteúdo mais eletrizante dos livros que pretende escrever.
A outra arma da força-tarefa para levar Cunha a contar o que sabe é a chance de preservar uma fatia dos recursos amealhados e, como atesta o despacho da 13ª Vara de Curitiba, ainda parcialmente desconhecidos: "A habilidade do acusado em ocultar e dissimular propinas, com contas secretas no exterior, parte não totalmente identificada nem sequestrada, permanece incólume".
Se as 7 mil páginas do processo ainda fazem da Lava-Jato uma obra aberta, a atribulada personalidade de Eduardo Cunha acrescenta dramaticidade a seu conteúdo - pelo que tem a contar e pelo equilíbrio político da operação. A prisão foi recebida como a antessala do desfecho do processo de Renan Calheiros, que hoje está nas mãos da independente ministra Cármen Lúcia, e daquele que envolve o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A eventual prisão do ex-presidente, vista com desgosto até pelo antecessor, Fernando Henrique Cardoso, em entrevista a "O Globo", passou a ser mais temida por petistas. A detenção de Cunha teria oferecido o colchão de isenção de que Moro precisava.
O ex-deputado foi levado para Curitiba num momento-chave para o futuro da força-tarefa. O Congresso não desistiu da anistia da Lava-Jato, as dez medidas anticorrupção correm risco de desidratação na Câmara e a repatriação ameaça dar um selo de indoneidade ao dinheiro do crime. A prisão de Cunha tirou a Lava-Jato da defensiva.
Cunha foi quase tão determinante para o lulismo quanto seu titular por lhe dar, ao mesmo tempo, freio e sustentação. Cultivou a aura de que passaria à história por ter derrubado dois presidentes. A lenda entrou nos autos sem deixar a política.
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