- O Globo
Maior tarefa do novo governo será reunir o país. As filas e o entusiasmo dos eleitores começaram a desanuviar o clima tenso dos últimos dias de ataques entre os candidatos americanos, mas ainda há um longo caminho até se curar as feridas desta campanha. Ela poderia ter sido uma disputa bonita, entre a primeira mulher e o primeiro outsider de um sistema que já mostrou seu envelhecimento. A tarefa agora será reunir o país.
Quando foi votar, Hillary Clinton ouviu a pergunta sobre se havia pensado na mãe dela, naquele dia. Dorothy Rodham nasceu no dia em que foi aprovado o direito de voto para as mulheres. Era impossível não pensar no quanto a sociedade americana avançou na redefinição do papel da mulher. Da mesma forma como foi impressionante a trajetória de Barack Obama, nascido antes da aprovação dos direitos civis.
Donald Trump Jr., num canal de TV, falou do contato do seu pai com milhares de americanos que trouxeram a ele suas frustrações. Isso é verdade. Por mais que o próprio candidato parecesse a tantos uma caricatura, os votos que Trump conquistou expressam o sentimento real de milhões de famílias de que a maior economia do mundo, mesmo quando cresce, não produz o mesmo volume de riqueza. Há um crescimento econômico hoje que não dá aos trabalhadores a mesma sensação de afluência de algumas décadas atrás. Não é culpa do presidente Obama, nem mesmo da China ou do México, como disse Trump. O mundo do trabalho mudou radicalmente, uma parte da indústria está em decadência, sendo substituída por outros polos produtivos. Muitos daqueles trabalhadores, sem curso superior, não conseguem o mesmo status que seus pais tiveram.
Esse tema, da qualidade do crescimento econômico, poderia até ter sido discutido mais profundamente, não fosse o volume de decibéis com que se travou o confronto de ideias durante a campanha. Uma eleição é sempre uma oportunidade de discutir problemas que realmente afetem o país. A disputa entre Hillary Clinton e Donald Trump foi definida como “feia” e “suja” pela imprensa, pela violência dos ataques entre os candidatos e pela ausência de temas relevantes em discussão. O mais importante agora será pavimentar a reconstrução do consenso em torno de alguns valores.
Em 2008, na eleição que levou Barack Obama ao poder, a crise financeira explodiu na reta final da disputa e isso virou assunto, evidentemente, mas o candidato democrata tinha levado para os debates o tema emergente da mudança climática. E com arte e competência misturou os dois assuntos, defendendo que parte da recuperação econômica americana poderia ocorrer através do desenvolvimento da energia limpa ou da adoção de formas de produção de baixo carbono. De fato, isso fez parte do crescimento americano que passou a ocorrer — ainda que em ritmo lento — após 2010. Nesta eleição nos Estados Unidos nada de conteúdo foi discutido e o aquecimento global sequer foi tocado nos debates ou teve espaços na mídia.
Foram expostas apenas as fraturas da sociedade americana e há muito a refletir diante do movimento que levou tão longe uma pessoa estranha ao mundo político e com ideias exóticas como Donald Trump. O “New York Times” em um editorial o definiu como “ignorante e tirano”. Sem meias palavras. Aliás, esta foi uma campanha que extinguiu as delicadezas.
Ao fim dela, todos têm muito em que pensar. O Partido Republicano ganhou as duas eleições com George Bush e nos dois mandatos de Barack Obama conseguiu ter maioria em uma ou nas duas Casas. Mesmo assim, não construiu uma liderança capaz de se contrapor a Donald Trump. Ele venceu 16 oponentes antes de se impor como candidato do partido.
O Partido Democrata, depois de dois mandatos presidenciais, com o presidente aumentando a sua popularidade em fim de governo, enfrentou muitas dificuldades em inúmeros distritos. O sistema bipartidário não reflete a pluralidade da sociedade americana. A eleição mostrou que enormes parcelas do eleitorado não se sentem representados pelos dois velhos partidos. Não foram discutidos temas importantes, mas essa campanha conseguiu — com maus modos — revelar trabalhos urgentes para corrigir os defeitos da democracia americana.
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