- Valor Econômico
• Reforma brasileira joga o ônus do ajuste nos mais jovens
A reforma da Previdência proposta pelo governo Temer está em linha com o que já fizeram as economias desenvolvidas do mundo. Mas difere num ponto importante do que fizeram nos últimos anos países que, como o Brasil, estiveram em crise financeira, como Espanha, Portugal e Grécia: a reforma brasileira joga quase todo o ônus do ajuste previdenciário nos jovens e nas gerações futuras. Além de ser injusto, isso pode ter consequências econômicas e políticas negativas.
A Previdência deveria, em teoria, operar em equilíbrio. Por várias razões, isso não funcionou. Na situação atual, o Tesouro (usando os impostos pagos pela sociedade) tem de financiar um déficit previdenciário crescente. Neste ano, esse déficit está estimado em R$ 148,8 bilhões.
Esse é um desafio comum em todo o mundo. A reforma Temer traz soluções que outros países já adotaram: aumento da idade de aposentadoria, com uma idade mínima, aumento do tempo de contribuição, relação direta entre tempo de contribuição e valor do benefício a ser recebido e a equiparação do regime do setor público ao setor privado. Pode-se discutir a dosimetria, mas esses remédios serão inevitáveis.
O problema é que a Previdência brasileira foi generosa demais por muito tempo. Isso criou um passivo atuarial grande para um país em desenvolvimento, ainda não dimensionado com precisão.
A reforma Temer faria com que esse passivo (ou estoque) parasse de crescer, o que é imperativo. Mas faria esse passivo recair quase que exclusivamente nos trabalhadores da ativa e nas gerações futuras, que pagarão essa conta por meio de contribuições e impostos ao longo de suas vidas. E recairia em parte também sobre as empresas.
Os aposentados que mais se beneficiaram desse sistema insustentável - seja por terem se aposentado cedo demais ou por receberem benefícios generosos demais - praticamente não são chamados a contribuir. Assim, os jovens terão de financiar benefícios privilegiados que eles mesmos jamais terão.
"O ajuste vai impor à geração atual pagar duas contas", diz Evandro Oliveira, líder da área de Previdência da consultoria Willis Towers Watson no Brasil. Ele se refere à própria aposentadoria e à dos atuais aposentados.
Laurence Kotlikoff, professor de economia na Universidade de Boston, nos EUA, chama isso de "expropriação geracional". As gerações mais velhas se deram benefícios pelos quais elas não pagaram e agora jogam a conta para as gerações mais jovens. Ele diz que o mesmo ocorre nos Estados Unidos. "Estamos quebrando as gerações futuras."
Para Kotlikoff, drenar a riqueza produzida pelas gerações jovens para as gerações mais velhas tem um custo econômico elevado. Ao aumentar a carga fiscal para cobrir o rombo previdenciário, limita-se a capacidade de consumo de quem arca com a maior parte desses impostos, isto é, os trabalhadores na ativa e as empresas. Isso reduz o consumo de uma parcela importante da população (são os jovens, por exemplo, os que mais investem em moradia) e os investimentos das empresas, o que prejudica a competitividade do país.
Kotlikoff é um dos principais estudiosos de economia generacional, que busca, entre outras coisas, medir o ônus fiscal deixado por uma geração para as seguintes. Ele diz que esse ônus costuma ser subdimensionado pela geração que gasta e que boa parte dele é mantido fora da contabilidade atuarial real.
"Jogar todo esse encargo nos jovens: 1. é generacionalmente imoral; 2. há um limite para isso, pois quando você retira boa parte da renda desses jovens [por meio de contribuições e impostos], não dá para ir muito além; e 3. os jovens terão pouco para poupar, o que significa que no futuro haverá pouco investimento."
Além disso, há consequências políticas dessa guerra geracional. Kotlikoff observa que a legião de aposentados americanos que vive na Flórida votou fortemente em Trump nas eleições nos EUA, o que foi fundamental para que o republicano vencesse num Estado-chave. Os jovens votaram em maior número em Hillary. No Brexit, os aposentados também votaram mais pela saída do Reino Unido da UE, enquanto que os jovens preferiam ficar no bloco.
Países que recentemente passaram por problema similar ao do Brasil - forte expansão do gasto previdenciário num período de crise fiscal - optaram por incluir os aposentados na quota de sacrifício.
Isso foi feito de vários modos. O mais direto é cortar parte dos benefícios, especialmente nas faixas maiores, como fez a Grécia, sob pressão do FMI e dos credores europeus. Outro modo foi adotar uma contribuição "ad hoc" sobre o valor da aposentadoria, como fez Portugal, que cobrou 3,5% de benefícios acima de € 1.350. Uma terceira opção foi corrigir as aposentadorias abaixo da inflação, o que reduz, com o tempo, o peso do déficit sobre as contas públicas. A reforma na Espanha desvinculou da inflação o reajuste da aposentadoria. Fica garantida apenas uma correção anual de 0,25%. O restante depende de o sistema ter superávit. A Alemanha passou anos reajustando apenas as aposentadorias mais baixas.
O presidente Michel Temer usou o seu próprio caso para ilustrar a insustentabilidade do sistema brasileiro. Ele se aposentou aos 55 anos como procurador e recebe o teto da aposentadoria do setor público, que é de R$ 30 mil (brutos). A reforma que ele propõe busca corrigir esse problema daqui para a frente, mas praticamente não toca no passado.
A reforma traz basicamente um único dispositivo que permite passar parte do ajuste aos inativos: a possibilidade de elevar a contribuição dos servidores públicos, o que valeria tanto para quem está na ativa como para os aposentados.
O maior obstáculo a alterar benefícios já concedidos é a tendência da Justiça brasileira de não mexer nos chamados direitos adquiridos. O professor Kotlikoff inclui isso como parte da guerra geracional: o lobby dos que dispõem ou estão perto de dispor desses direitos é mais forte do que o lobby dos que pagam ou pagarão por eles.
Um servidor português aposentado questionou na Justiça a contribuição extra cobrada pelo governo. O caso chegou à Corte Europeia de Direitos Humanos, que decidiu a favor do governo. A corte considerou que a redução temporária do benefício, apesar de ferir o direito de propriedade, é legítima quando "destinada a garantir um balanço justo entre o interesse geral da comunidade e a proteção dos direitos humanos dos aposentados".
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