- Valor Econômico
• Estratégia de ajuste fiscal de Temer poupa os mais ricos
A urgência é o principal argumento da narrativa do governo Temer para aprovar sua agenda de reformas, a da Previdência agora na linha de frente. A peça publicitária veiculada na mídia não detalha o conteúdo da proposta. Apenas afirma ser esta nossa derradeira ponte para o futuro: tornou-se imperativo reformar hoje para usufruir amanhã.
Revela pouco estudo quem afirma que o Brasil é caso singular de protelação do ajuste em contextos de bonança. Trabalho elaborado por Alberto Alesina e colaboradores para o FMI, "Who adjusts and when?", mostra que a principal estratégia para enfrentar o déficit público, na OCDE e nos países em desenvolvimento, é o adiamento. São as crises que favorecem que medidas de estabilização sejam adotadas. A razão é de natureza redistributiva. Políticas de ajuste fiscal distribuem desigualmente custos e benefícios. Ao formular uma estratégia, governos escolhem ganhadores e perdedores. Se os grupos penalizados tiverem força política para vetar suas potenciais perdas, o resultado é a postergação, até que uma nova janela de oportunidade se abra.
A estratégia de ajuste fiscal de Temer poupa os contribuintes mais ricos, com base no argumento de que a carga tributária já é muito alta, o que prejudica a competitividade da economia brasileira. O argumento sugere que a carga tributária é igualmente distribuída. Não é. Pessoas físicas de altíssima renda contribuem em termos percentuais muito menos do que a classe média alta, cuja renda é descontada na fonte. Em artigo do Valor, Sergio Gobetti mostra que cerca de 70 mil indivíduos com renda média anual de R$ 4,5 milhões pagaram em 2013 menos de 2% de IRPF sobre sua renda total. Estima que a reintrodução da tributação sobre dividendos, extinta em 1995, dando origem a esta distorção, poderia gerar R$ 50 bilhões de receitas adicionais.
Os grandes perdedores da PEC da Previdência de Temer, caso esta seja aprovada, serão os mais vulneráveis. A reforma desvincula o benefício concedido aos deficientes e idosos pobres do valor do salário mínimo. Sequer define qual seria seu montante. Recusa o Estatuto do Idoso e diz que nesta categoria só entra quem tem 70 anos. Em 2015, este benefício custou R$ 14 bilhões aos cofres da Previdência. Tirou da pobreza cerca de 4 milhões de pessoas.
A escolha se justifica pelo princípio de responsabilidade individual. Não seria justo que alguém receba um benefício sem ter feito contribuições proporcionais ao benefício. É responsabilidade do indivíduo ser baixamente qualificado e ter tido uma inserção irregular no mercado de trabalho.
Para ser convincente, contudo, esta motivação moral deveria também alcançar os beneficiários dos R$ 60 bilhões não arrecadados com isenções e deduções de contribuições para a previdência social, conforme nos informa Cristiano Romero, no Valor.
A eficácia do argumento "ou PEC ou caos" varia conforme a arena, contudo. Convenceu a maioria dos membros do STF em dezembro, no episódio "Renan Calheiros e a linha sucessória", a ponto de abalar seriamente sua credibilidade junto à opinião pública. Mas, a sobrevivência dos membros da Suprema Corte no cargo não depende do eleitorado.
Na arena parlamentar, a urgência da reforma não é o único - e nem o principal - elemento da decisão. Ali, a sobrevivência no cargo depende, sim, do eleitorado. Mesmo que Temer não pretenda concorrer em 2018, é certo que sua base parlamentar pretende. Para esta, não serve o conselho de Nizan Guanaes. Impopularidade é algo a ser evitado. Quanto mais quando a diferença entre ser julgado ao ritmo de Sergio Moro ou ao ritmo do STF está em ter um cargo parlamentar. Quem não for reeleito, corre o risco de ir para Curitiba.
Por isto, o desempenho parlamentar de Temer em 2016 não é um bom preditor para 2017. As medidas aprovadas em 2016 tinham custos difusos. Nenhuma categoria específica do eleitorado se percebe como diretamente afetada pela PEC do Gasto, ou pela DRU, ou ainda pelas regras de participação da Petrobras na exploração do pré-sal. São matérias invisíveis ao grande público. Durante sua tramitação, a oposição estava no "corner", desautorizada politicamente pela política expansionista do governo Dilma e por sua associação com o escândalo da Petrobras.
A PEC da Previdência pertence a outro tipo de políticas. Impõe custos concentrados a categorias específicas de beneficiários. É altamente visível. As votações nominais obrigam os parlamentares a assumir publicamente sua posição. Deve ser comparada às matérias que tratam dos aumentos do funcionalismo e da dívida dos estados. Nestas, sob Dilma e sob Temer, a resposta deste Congresso foi jogar bombas fiscais no gabinete do presidente. Neste caso, o presidente sequer pode vetar a bomba, por se tratar de emenda constitucional.
A proposta de reforma previdenciária de FHC pretendia equiparar os benefícios dos setores público e privado. Amargou três anos e meio de tramitação. O texto finalmente aprovado foi muito distante do original. As perdas foram impostas apenas para os trabalhadores do setor privado, dada a capacidade dos partidos de esquerda, da CUT e dos servidores públicos afetarem os cálculos (re)eleitorais da base parlamentar do presidente. A proposta de Lula concentrou-se no setor público, mas pretendia incluir o Judiciário no teto previdenciário. A rapidez na tramitação da reforma, aprovada em menos de um ano, se deveu, entre outros fatores, às concessões feitas ao Judiciário, que ameaçou vetar a proposta por inconstitucionalidade. Sem o apoio do PSDB, não teria sido aprovada.
A despeito das concessões, a indisciplina partidária foi superior à média em ambos os casos. Em matérias de imposição de perdas, o cálculo do parlamentar é não deixar as digitais em decisões sobre as quais possa ser acusado de prejudicar sua base eleitoral. Sabe que, mesmo que o eleitor seja mal informado, seus concorrentes na área em que obtém votos tratarão de informá-lo na próxima eleição.
É para lá de otimista a expectativa de aprovar esta PEC no primeiro semestre. 2017 será o grande teste da força parlamentar do governo Temer.
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Marta Arretche é professora titular do Departamento de Ciência Política e pró-reitora adjunta de pesquisa da USP, diretora do Centro de Estudos da Metrópole
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