quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Callado e secreto

• Acervo do escritor e jornalista, que completaria cem anos hoje, traz correspondência pouco explorada com grandes nomes da cultura nacional

Bolívar Torres | O Globo

Ana Arruda tinha acabado de se mudar para a casa de Antonio Callado, em Petrópolis, quando Salim Simão, um dos grandes amigos dele, tocou a campainha. Aproveitando a ausência do companheiro, ele entrou bruscamente na sala. “Você que é a Ana Arruda? Então vou lhe falar: se pensa que um dia vai conhecer esse homem só porque está com ele, engana-se. Ninguém conhece esse homem.”

O casal ficou junto até a morte de Callado, em 1997. Mas, apesar dos 24 anos de convivência (o episódio acima aconteceu em 1973), Ana Arruda reconhece que o “homem” continua um mistério para ela. Nascido há exatos 100 anos, o escritor, dramaturgo e jornalista se consagrou como referência intelectual, símbolo da resistência à ditadura e uma das personalidades que mais pensaram o Brasil. Um outro Callado, porém, continua “secreto”. As peças desse quebracabeças podem ser garimpadas no acervo do autor guardado na Fundação Casa de Rui Barbosa, que contém cartas, anotações, fotos e diários, em sua maioria inéditos. Nunca transformada em livro, sua correspondência expõe décadas de convivência com figuras centrais da cultura do país entre os anos 1940 e 1990. A Casa de Rui, aliás, inaugura as celebrações do centenário promovendo hoje, a partir das 16h, uma mesa-redonda com Ana Arruda, Tessy Callado (filha do autor) e os pesquisadores Alcmeno Bastos, Eduardo Jardim e José Almino de Alencar.

“PROVAR MESCALINA
— Callado não me mostrava tudo o que tinha e não era cuidadoso com o seu acervo. Ele dizia que um museu não se faz em vida — conta a viúva do autor, que chegou a organizar uma “Fotobiografia” sobre ele, lançada em 2013, usando parte do material. — Só comecei a olhar melhor depois que ele morreu, mas ainda há muita coisa para se descobrir.

É curioso que, apesar da variedade e importância de seus interlocutores, pouquíssimas cartas que lhe foram enviadas aparecem em antologias de terceiros. Uma injustiça, dado que o romance preferido do escritor, “Reflexos do baile” (1976), o único que lhe satisfazia plenamente do ponto de vista literário, é uma espécie de colagem de cartas e bilhetes fictícios.

De Jorge Amado a Clarice Lispector, de Lucio Costa a Carlos Lacerda, a História do Brasil na segunda metade do século XX desfila pelo correio do autor de “A Madona de Cedro”. E, ainda que ele tenha admitido, em carta a Hélio Pellegrino, não dispor da “vitalidade epistolar” de amigos como Rubem Braga, é considerado um “missivista nato” por outro interlocutor ilustre, Ignácio de Loyola Brandão. “Você, como o Otto (Lara Resende),

é um dos poucos que continuam cultivando o gênero”, lhe escreve o escritor paulista nos anos 1970.

Callado troca mensagens de luto com Carlos Drummond de Andrade (ambos perderam uma filha) e fala sobre escrita com João Guimarães Rosa. Pergunta-lhe a fonte de inspiração para “A terceira margem do rio”, e o autor mineiro responde que não sabe explicar — quando tem ideias para um livro, diz, a primeira coisa que faz é entrar em uma igreja. Com Clarice, conversa sobre os efeitos da mescalina, que parece interessar particularmente à autora de “A hora da estrela”. “Lembre-se de uma observação de Raskólnikov (personagem de “Crime e castigo”) que mencionei a você”, escreve Callado. “Ele diz a alguém que quando estamos fracos (...) em geral não passamos a ter visões, como se diz. O nosso estado de fraqueza, isso sim, permite que as vejamos, pois elas estão sempre lá, mantidas à distância pelos espíritos animais”. Ele ainda dá dois conselhos: “não desista de provar a mescalina” e “faça planos de conhecer os índios”.

A importância de Callado no meio intelectual fica evidente especialmente após a publicação de “Quarup”, em 1967, elogiado em cartas por Otto Lara Resende (“tese brasileiro-antropofágica”) e Hélio Pellegrino (“romance de dimensão telúrica”). Depois do lançamento, Callado está em Londres, desfrutando ventos novos e muito hippies, quando recebe de Pellegrino a notícia de que o romance é “um best-seller autêntico”, um dos mais vendidos nas “feiras de Ipanema”. Glauber Rocha, que tentou adaptar “Quarup” para o cinema, discute os planos para a filmagem — e sugere Othon Bastos como possível intérprete do padre Nando (o livro só viraria filme em 1989, pelas mãos de Ruy Guerra, com o título “Kuarup”, com k, e Taumaturgo Ferreira como protagonista). Jorge Amado envia cartões dos países por onde viaja e informa que, no exterior, não há um só dia em que não fala de Callado, seja em “palestras, discursos e conversas”. Para os mais novos, como Ignácio de Loyola Brandão, com quem começou a se corresponder no início dos anos 1980, Callado é “um modelo de como estar e ser dentro da vida”.

DOCUMENTÁRIO A CAMINHO
As cartas também dão uma pista de como Callado se sentia no exílio e em seus muitos endereços em diversas partes do mundo. Em Paris, nos anos 1970, ele conta a Pellegrino que sofre com a revisão da tradução de “Quarup” para o francês e se mostra encantado com o teatro da companhia de Jean-Louis Barrault. Em outra oportunidade, preparando-se para se mudar para Londres, diz que terá finalmente um “descanso” do Rio, uma cidade que lhe exigia muito.

O acervo do escritor foi uma das principais fontes de pesquisa para a produção do documentário “Callado: vestígios” (título provisório), da diretora Emilia Silveira, que deverá sair no segundo semestre deste ano. O longa colhe depoimentos de pessoas que se relacionaram com o autor, na tentativa de fazer o que nem a sua viúva conseguiu: descobrir quem é o verdadeiro Callado.

—Ele tinha uma convivência intelectual e literária muito rica, um dia a dia com muitos encontros, jantares, era sempre escalado para receber, no Brasil, personalidades internacionais como Jean-Paul Sartre e Aldous Huxley — explica Emilia. — No filme, busco vestígios de Callado que sobraram e ficaram na memória das pessoas.

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