A obra máxima de Ferreira Gullar ganha testemunho e outros olhares nas imagens de Márcio Vasconcelos no Museu Afro Brasil
Amilton Pinheiro | O Estado de S.Paulo
Em um dos trechos do seu livro Poema Sujo, escrito em 1975, no seu exílio em Buenos Aires, e lançado no Brasil no ano seguinte, o poeta Ferreira Gullar (1930-2016) diz: “Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade sob as sombras da guerra”. Gullar na urgência de rememorar sua infância e as primeiras descobertas de adolescente em São Luís do Maranhão, queria deixar seu testemunho, diante da possibilidade da morte que assombrava seus pensamentos de exilado da ditadura militar do Brasil.
Diante desse material tão particular e único, que inaugurou uma nova linguagem na poesia brasileira, quis o fotógrafo Márcio Vasconcelos se debruçar, enfrentando o desafio quase intransponível de interpretar em imagens o manancial de vida que pulsa no livro Poema Sujo. “Eu nasci e vivo até hoje em São Luís do Maranhão. E, desde que me entendo por gente, convivo com os lugares e as pessoas que estão no Poema Sujo de Gullar. Encontro resquícios de sua poesia nos bares, nos becos, nas ruas, nas águas que escorrem pelas ladeiras depois da chuva, nas paredes rachadas dos casarões abandonados, dos telhados das casas, do cheiro do sexo que exala nas ruas do centro histórico, etc.”, explica Vasconcelos.
Sua empreitada está presente na exposição Visões de Um Poema Sujo,com curadoria do escritor Diógenes Moura, em cartaz no Museu Afro Brasil, que traz 94 imagens coloridas e uma em preto e branco (a de um barco encalhado), que o fotógrafo foi tirando ao longo de mais de 20 anos, além de trechos do livro de Gullar em áudio com cantores e do próprio poeta declamando, que está em uma sala especial do museu, e transcrições do Poema Sujo.
O curador conta que ninguém poderia traduzir o Poema Sujo em fotografia, seria um suicídio, entende ele. “Márcio Vasconcelos vive dentro da poesia de Ferreira Gullar, ele transpira aquilo tudo, cada lugar, cada pessoa, cada palavra. Ele nunca saiu de São Luís do Maranhão, assim como o fotógrafo Luiz Braga nunca saiu de sua cidade (Belém do Pará) e, por isso, eles conseguem interpretar o que a cidade nos quer revelar.”
O projeto nasceu inicialmente de um prêmio que Márcio Vasconcelos ganhou, em 2014, o Marc Ferrez de Fotografia da Funarte, que gerou uma exposição no Museu de Artes Visuais, em São Luís do Maranhão, em março de 2015. “Eu tinha uma vontade imensa de trabalhar com o Poema Sujo e, quando apareceu este edital da Funarte, entrei em contato com Gullar, que já tinha sido presidente da instituição. Ele prontamente autorizou que eu usasse seu livro como referência”, fala também Vasconcelos.
Gullar, que não viajava de avião, não chegou a ver a exposição em sua cidade natal, mas na época recebeu um catálogo, que teve sua aprovação, recorda o fotógrafo. Mas Márcio Vasconcelos sentiu que aquela mostra ainda não contemplava a riqueza das palavras e das temáticas do Poema Sujo. Havia muito mais a ser revelado com ajuda de fotografias.
Foi aí que a proprietária da editora Vento Leste, que já tinha editado dois livros do autor, um deles sobre a trilha do cangaço, Monica Schalka, propôs ampliar o seu projeto com um novo livro e uma exposição sobre o Poema Sujo e convidou Diógenes Moura, que já tinha sido curador de outro livro semelhante da editora, sobre um fotógrafo e um poeta.
Ferreira Gullar, que morreu no dia 4 de dezembro de 2016, não chegou a ver essa nova exposição montada, mas deixou para Vasconcelos a missão de interpretar em imagens a sua obra. “É o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre”, dizia o poeta sobre seu livro.
VISÕES DE UM POEMA SUJO
Museu Afro Brasil. Av. Pedro Álvares Cabral, Portão 10, s/nº, Parque do Ibirapuera.
3ª a domingo, 10 às 17h (grátis). Até 26/3
VISÕES DE UM POEMA SUJO
Autor: Márcio Vasconcelos
Editora: Vento Leste (122 págs., R$ 70)
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