domingo, 20 de agosto de 2017

A Venezuela não é aqui | Luiz Sérgio Henriques

- O Estado de S.Paulo

Temos à frente a imensa tarefa de reformar um Estado disfuncional e uma sociedade injusta

As coisas – assim como as ideias e os livros – estão no mundo, só que, como no samba, é preciso aprender. E foi assim que nos anos mais duros do regime autoritário abriu caminho, aos poucos e não sem muito atraso, a noção de que nosso país, em tumultuado processo de modernização conservadora, mesmo sem resgatar integralmente as hipotecas do passado, estava fadado a construir estruturas e culturas políticas de tipo “ocidental”, que dariam a todos a régua e o compasso para pensar os problemas e elaborar, com meios propriamente políticos, as hipóteses de sua superação.

Do ponto de vista dos opositores do autoritarismo, a lição da realidade parecia cada vez mais clara. Deveríamos dar um adeus definitivo às ilusões da militarização da política, bem como à tentação de recorrer aos caudilhos terceiro-mundistas monopolizadores de praças e falas – apesar da sedução que a revolução cubana exercia sobre frações relevantes da velha e, paradoxalmente, da nova esquerda, nisso internamente incoerente com a novidade que alegava representar.

Um mundo diverso deveria agora ser descoberto: não o da “tomada do poder” por meio da violência ou o exercício deste mesmo poder pela força bruta, com o desconhecimento dos mínimos requisitos ditos procedimentais, tal como, para eliminar qualquer dúvida, a existência de oposição legítima e competitiva, capaz de voltar a ser maioria em eleições regularmente dispostas. A política se deslocaria, assim, para a “sociedade civil”, lugar plural por excelência, no qual a permanente construção de consensos devia ter como único norte padrões mais altos de civilização. E uma esquerda moderna se tornaria, afinal, fiadora da República e da democracia, atraindo para este campo favorável o conjunto das correntes da política, isolando extremismos e inviabilizando retrocessos autoritários. Uma mudança verdadeiramente histórica.

Reafirmar este horizonte, em grande parte enevoado, parece particularmente importante num momento de fúrias desatadas na esquerda latino-americana e, por consequência, na brasileira. A “perspectiva venezuelana” – e suas projeções entre nós, como o atesta a posição oficial do PT e de considerável setor da intelectualidade – lança uma pesada sombra sobre tal horizonte, que essencialmente requeria, e ainda requer, a convicta superação do paradigma da “revolução” em benefício daquele da “democracia”. Talvez tenhamos sido excessivamente otimistas quanto ao ritmo e à consistência desta passagem: vistas as coisas em sua aparência imediata, o que a corrente autoproclamada revolucionária agora pretende é uma segunda oportunidade na Venezuela de Chávez e Maduro, sob a forma de radicalização violenta do “socialismo do século 21”.

De fato, a “cubanização” do regime venezuelano domina a conjuntura do bolivarianismo. Os adeptos da radicalização voltam a atacar aqueles que teriam uma concepção “fetichizada” da democracia, reduzindo-a a seus pressupostos “liberais”, quando – dizem – o caminho deles é a democracia direta dos produtores, dos povos originários, das mulheres e dos oprimidos em geral. Desprezam a notável conquista do sufrágio direto e universal, assim como buscam suprimir todo e qualquer resto do arcabouço jurídico “burguês” que, só ele, como mostram as duras réplicas da história, torna possíveis os ensaios de democracia direta e de auto-organização da sociedade.

A violência reaparece, ameaçadora. No imutável “Oriente” dos revolucionários de Nuestra América, o essencial é que se imponham os interesses das classes populares, tal como redefinidos e enquadrados por estruturas verticalizadas e autoritárias. Se irão se impor pela via “eleitoral” ou pela “armada”, passa a ser um problema secundário. Nos manifestos deste Oriente ressurrecto, escreve-se o termo “guerra civil” com a naturalidade dos politicamente levianos, que se obstinam em desconhecer o quanto uma perspectiva desse tipo arruína, antes de mais nada, a vida dos subalternos, como, para dar só um exemplo, os homens e as mulheres comuns que já atravessam a fronteira roraimense e cujo fluxo parece estar só no começo.

Os brasileiros participamos, querendo ou não, deste revival antidemocrático. Ainda não nos demos plenamente conta da nocividade do argumento que transformou o impeachment da presidente Dilma Rousseff em “golpe institucional”, alardeado, no fundo, por quem desconsidera ritos constitucionais densos de conteúdo. Argumento fraco, entre outras razões por ter o PT tentado, por meio de parlamentares ou de intelectuais “orgânicos”, o impeachment de todos os presidentes da redemocratização, desde que de outras legendas. Tratada com a mesma lógica, esta reiteração caracterizaria uma espécie de golpismo permanente ou de subversivismo juvenil, próprio de uma força pouco leal na oposição e intolerante no poder.

Além de fraco, o argumento é perturbadoramente nocivo: é que o afastamento da presidente Dilma insere-se, de modo irracional e anti-histórico, numa “narrativa” mais ampla de golpes reais ou supostos contra os governos progressistas latino-americanos, rubrica em que entram desde os dirigidos por bufões até os que tiveram à sua frente estadistas como Salvador Allende. Há nisso, convenhamos, menos a pitada do surrealismo tradicional na região do que uma infâmia pura e simples: Allende não pode andar em reles companhia.

Felizmente, nunca fomos tão longe como na Venezuela. Nosso universo mental, inclusive o de boa parte da esquerda, não está congelado em oposições irredutíveis nem gira em falso entre “império ou revolução”, “pátria ou morte”. E a burguesia nacional, como dizia um bom frasista, não cabe em Miami. Longe do delírio revolucionarista, temos pela frente a imensa tarefa de reformar um Estado disfuncional e uma sociedade injusta. Não aprendemos exatamente como fazê-lo, mas o método só pode ser o democrático.
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* Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci.

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