domingo, 20 de agosto de 2017

Progresso contra civilização | Cacá Diegues

- O Globo

Castigo a ladrões e a empresas que, em detrimento do que é devido ao resto da população, compraram com dinheiro público os serviços desses ladrões é gesto político civilizatório

Ao longo da história da humanidade, o progresso nunca existiu como ideologia social até que se tornou uma invenção do capitalismo produtivo. Ou seja, um mito criado para justificar o lucro, o resultado de sua produção em benefício do bemestar de todos.

Mas como seu rumo não depende de regras morais ou qualquer pressuposto ético, o progresso não pode ser medida justa para o julgamento do estado da humanidade. O que caracteriza o bem-estar de qualquer grupo humano é seu nível de civilização, a medida justa dos valores que valem. A civilização pode avançar através do progresso; mas quando houver conflito entre um e outro, temos que estar sempre com a civilização.

Num regime democrático, essa distinção entre um bem aparente e o próprio sentido da vida tem que ser sempre encarada e respeitada, a qualquer custo. O progresso pode ser um bemvindo produtor de bens para melhor servir à nossa vida; mas o sentido último de nossa vida está na ideia de civilização, de maior bem-estar entre seres humanos que devem coexistir apesar de sua natureza selvagem.

Construir uma civilização significa construir regras de comportamento, uma ética em permanente aperfeiçoamento de hábitos e costumes que sirvam a um maior entendimento, a uma coexistência de paz entre seres humanos. A civilização faz progredir, o progresso não civiliza nada.

Essa dialética entre civilização e progresso me ocorre sempre que ouço ou leio essa história de que a luta contra a corrupção pública, o processo desencadeado pela Lava-Jato, está levando o país a perder suas grandes empresas e, portanto, a empobrecer. O castigo a ladrões presos e a empresas que, em detrimento do que é devido ao resto da população, compraram com dinheiro público os serviços desses ladrões é um gesto político civilizatório.

É impossível saber se serão bem-sucedidos mas, mesmo que não tenham sido esses seus objetivos expressos, o que os homens da LavaJato fazem é reorganizar a vida do país de maneira mais justa e igualitária, com mais confiança no futuro. Uma vida mais civilizada, não importa se não estão todos a favor da Lava-Jato, torcendo por ela. O desencanto e o desinteresse da população revelam uma falta de ânimo, uma ausência de dopamina social, resultado de tantas vitórias fracassadas, de tantos fracassos inúteis.

A esperteza política faz com que a virtude máxima da democracia (o conflito democrático, que faz o mundo avançar com a vitória da razão e do mais correto) seja sempre substituída pelo mito da unidade. E é em nome da unidade, contra o perigo do dissenso ideológico, que os golpes mais sórdidos são executados. Como esse que se tenta agora contra a Lava-Jato, sob o argumento fariseu do “empobrecimento” da economia.

A pregação da unidade em momento de crise visa sempre ao recuo em nome de uma paz mentirosa, contra o avanço político e moral. Para ter unidade, é preciso que as partes abram mão de suas ideias e, assim, permaneçam, no estágio anterior a elas. Na verdade, a crise e o conflito é que são democráticos. O unitarismo, não. E é sempre ao unitarismo que a esperteza política recorre para evitar o avanço da democracia.

O problema urgente é que temos diante de nós outubro de 2018, como meta para fazer democraticamente as necessárias transformações no país. Trata-se de preparar um movimento popular que se importe com o que as pessoas precisam. E não com siglas partidárias, seus objetivos e interesses pessoais, financeiros ou ideológicos. É quase uma outra revolução cultural; a revolução cultural do Extremo Ocidente, o lugar do Brasil no mundo. A alternativa a essa revolução só pode ser a força que ninguém quer.

Seu cansaço coletivo me dá a sensação e a esperança de que nossa população não quer mais saber do sebastianismo autoritário de nossa tradição, sempre disfarçado pela conversa fiada de evitar o pior. É sempre possível, através do conflito democrático, fazer a sociedade avançar com a vitória da razão e da sensatez, sem apelo à polarização burra ou ao mito da unidade que acaba servindo de pretexto ao autoritarismo.

Ninguém nasce livre, todos já nascemos dependendo dos outros; a nossa relativa liberdade só é conquistada ao longo da vida. Mas ela também significa compromisso com os outros, naquilo que julgamos convir a todos. É sempre uma ilusão considerar que existe uma vontade coletiva, firmada em torno de uma verdade coletiva. Há, em certa filosofia contemporânea, a ideia de que não existe a verdade, mas sim uma versão de fatos segundo cada narrador. Vamos então instaurar uma versão de fatos que sirva a todos, e não apenas a alguns.

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Cacá Diegues é cineasta

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