quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Carlos Alberto Sardenberg: Direito de quem?

- O Globo

A defesa de supersalários e privilégios de governantes e parlamentares está na ordem do dia; não é só na Justiça

Pode ser que a história não seja exatamente assim, mas que parece, parece: está em curso um movimento para legalizar os salários do funcionalismo que excedem o teto de R$ 33,7 mil. No primeiro momento, os beneficiários desses chamados supersalários tentaram esconder os números. A presidente do STF, Cármen Lúcia, passou meses tentando obter dos tribunais de Justiça de todo o país a lista completa dos vencimentos e dos auxílios (moradia, transporte, educação, saúde etc.), as tais verbas que rompem o teto. Conseguiu no finalzinho do ano e prometeu uma análise para 2018.

Reparem: a ministra não mandou cortar nem suspender os penduricalhos, ainda que fosse provisoriamente. Apenas prometeu alguma providência futura, observando que pode haver “extrateto” legal.

Ora, é justamente esse o argumento dos tribunais e das associações de classe de juízes: o salário-salário, digamos assim, fica abaixo do teto. O que vem acima são “verbas indenizatórias”, que não contam como salário, mesmo que sejam pagas regularmente todos os meses. Ou seja, parece salário, é pago como salário mensal, mas, juridicamente, é “verba”.

O levantamento entregue ao Conselho Nacional de Justiça mostrou que o extrateto é regra, e não exceção. Quase 80% dos juízes estaduais, por exemplo, ganham acima dos R$ 33,7 mil.

Não é a primeira vez que se dá um drible nessa legislação. Não faz muito tempo, o teto era o salário do presidente da República (hoje de pouco mais de R$ 30 mil). Mexe daqui, mexe dali, aconteceu que os vencimentos dos ministros do STF ultrapassaram o teto presidencial. E, assim, em vez de se reduzir o salário dos ministros da Corte, elevou-se o teto — esse que agora é sistematicamente superado.

A novidade deste ano é que o pessoal como que “assumiu” o supersalário. Em Rondônia, por exemplo, o rendimento líquido dos juízes variou de R$ 62 mil a R$ 227 mil — recorde nacional no mês de novembro. Explicação do Tribunal de Justiça estadual: normal, trata-se de pagamento atrasado de auxílio-moradia e transporte.

No próximo ano, se a ministra Cármen Lúcia colocar na pauta, o plenário do STF vai discutir a constitucionalidade do auxílio-moradia — hoje pago mensalmente a todos os juízes do país, por força de liminares concedidas por Luiz Fux. Apostas abertas, caro leitor: como decidirá a Corte?

Mas não é só no Judiciário. A defesa dos supersalários e dos privilégios dos parlamentares e governantes está em plena atividade. No pacote fiscal do governo, havia duas medidas que afetavam os salários do funcionalismo: o adiamento do reajuste de várias categorias de 2018 para 2019; e o aumento da contribuição previdenciária de 11% para 14% para os que ganham acima de R$ 5 mil e incidindo só sobre a parte que ultrapassar os R$ 5 mil.

O ministro Ricardo Lewandowski derrubou as duas. Argumento, entre outros: não se pode discriminar nem penalizar os servidores que ganham mais; a alíquota de 14% seria “arbitrariamente progressiva”.

Ora, então vamos cancelar a tabela do Imposto de Renda. Aqui, como em toda parte, a tabela é progressiva, de tal modo que os que ganham mais, pagam mais. Na tese de Lewandowski, isso seria arbitrário, injusto, a menos que seu argumento tenha valor apenas para o alto funcionalismo.

Na verdade, esse debate ficou enviesado. Reparem: não se fala em meritocracia, na qualidade do serviço prestado, no eficiente exercício da função. Ficou assim: de um lado, muita gente, mas muita mesmo, estupefata com os supersalários e, de outro, os interessados dizendo que é assim mesmo, um direito, e pronto.

De certo modo, ficou assim também na Lava-Jato e nas suas ramificações. Há juízes que mandam soltar, não vendo nada de anormal no sistema político, e outros que mandam prender, escandalizados com o nível de corrupção.

Também na reforma da Previdência: de um lado, um déficit que passa de R$ 270 bilhões neste ano; de outro, a defesa da aposentadoria plena na casa dos 50 anos.

Outro caso de que nos ocupamos: os nove vereadores da cidade paraibana de Baía da Traição ganham R$ 3.500 por mês, cada um. Contando o décimo terceiro e considerando que a Casa se reúne 24 vezes por ano, isso dá R$ 1.895 por sessão. O município tem 8.915 moradores, com renda per capita estimada de R$ 250 por mês.

Só um exemplo. Nas eleições do ano passado, foram preenchidas 57.931 vagas de vereador, nos 5.568 municípios. Se todos esses parlamentares recebessem o mesmo salário dos colegas de Baía da Traição, isso daria R$ 2,6 bilhões ao ano.

Mas essa conta é muito por baixo. O vereador de Baía da Traição, rico na sua cidade, é pobre no país. No Rio, por exemplo, considerando salários e mais verbas de gabinete e de pessoal, cada vereador custa cerca de R$ 107 mil por mês. Em São Paulo, R$ 156 mil.

Assunto debatido, mesma resposta: é direito.

Para 2018, há muito mais do que eleições. Uma discussão sobre o que é mesmo direito, legal e ético. Que seja um bom ano para todos.

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