quinta-feira, 5 de julho de 2018

Maria Cristina Fernandes: Disputa de ofício

- Valor Econômico

Em 30 dias, STF tira poderes conquistados pelo MP em 30 anos

Da promulgação da Constituição de 1988 até o início do mês passado, em apenas uma ocasião o Supremo Tribunal Federal decidiu arquivar um inquérito à revelia da Procuradoria-Geral da República. Nos últimos 30 dias, foram seis os arquivamentos de ofício. São assim nomeados pelo jargão jurídico os processos encerrados pelo juiz da causa sem a provocação do ministério público, encarregado da investigação.

O levantamento é de Vladimir Aras. Integrante da força-tarefa do Banestado nos anos 1990 e das operações transnacionais da Lava-Jato, o procurador da República hoje atua em Brasília e é diretor de assuntos legislativos da associação nacional de sua corporação.

O ativismo do Supremo na matéria, somado à decisão que autorizou o Judiciário a homologar delações da polícia sem consulta aos procuradores, ameaça retroagir, em 30 dias, os poderes conquistados pelo MP nos últimos 30 anos.

Visto de fora, o embate entre procuradores e magistrados tem as tintas de briga corporativa, mas vai muito além disso. É o equilíbrio de forças estabelecido pela Constituição de 1988 que está em jogo. O juiz autoriza busca e apreensão, interceptação e prisão, mas não é parte da investigação, como nos Estados Unidos e em contraste com a herança ibérica.

Instituição das mais fortalecidas pela Carta, o MP agora enfrenta, sem revisão constitucional chancelada pelo Legislativo, a poda pelo Supremo. Na última vez que houve ofensiva semelhante, com a Proposta de Emenda Constitucional 37, que tirava da alçada dos procuradores investigações de desvio de verbas, crime organizado e abusos cometidos por agentes do Estado, o ministério público contou com uma mobilização de massa.

Imiscuído a uma pauta difusa, o combate à PEC 37 levou milhares às ruas naquele junho de 2013. Ninguém sabia direito do que se tratava, mas os procuradores conseguiram adesão à ideia de que a limitação de suas prerrogativas era também uma afronta aos direitos da cidadania.

Enquanto as convicções dos procuradores de Curitiba prometiam varrer a política de cabo a rabo, o Ministério Público segurou a plateia. Depois veio a esparrela da delação da JBS com a cooptação de um dos seus pelos réus. A iniciativa do então procurador-geral Rodrigo Janot de dar publicidade aos fatos foi insuficiente. Com a homologação, o Supremo havia sido envolvido na trama e, a pretexto de vingar a desmoralização, foi à forra.

Nos seus arquivamentos em série, o Supremo começou a fazer uma lipoaspiração na histórica lista de Janot. A despeito da gestão Raquel Dodge na PGR ter colaborado para este enxugamento com o pedido de arquivamento de inquéritos como aqueles que investigaram as denúncias da Odebrecht contra o ministro Aloysio Nunes Ferreira, os senadores Ciro Nogueira e José Serra, e o deputado Onyx Lorenzoni, a Corte resolveu acelerar, de ofício.

Procuradores queixam-se da falta de reação da PGR contra o que é visto como um desacato à instituição por ministros como Gilmar Mendes. Egresso do ministério público, ele hoje é tratado como um Darth Vader, o vilão de 'Guerra nas Estrelas' que traiu suas origens. Atribuem a reação do Supremo não apenas à politização da Corte mas também ao avanço das investigações sobre fontes de informações até hoje blindadas, como os doleiros.

Tanto na PEC 37 quanto na decisão recente das delações premiadas, a Polícia Federal aparece como a instituição diretamente beneficiária da perda de poder do MP. Não é, porém, contra os policiais que procuradores se voltam, mas, sim, contra o poder que lhes usurpa a prerrogativa de comandar a investigação ao delimitar a duração de inquéritos a um ano.

A investida do Supremo, no entanto, não se limita ao MP. É autofágica. O Supremo ataca o ativismo do juiz Sergio Moro nos inquéritos sob sua jurisdição mimetizando-o. A autoria compartilhada dos arquivamentos em série que marcaram os últimos 30 dias mostra a presença de ministros das duas principais correntes que hoje dividem a Corte.

Gilmar Mendes arquivou, de ofício, os inquéritos dos senadores Aécio Neves (PSDB) e Jorge Viana (PT), Dias Toffoli, dos deputados Bruno Araújo (PSDB) e Daniel Vilela (MDB). Por outro lado, Alexandre de Moraes arquivou o do senador Eduardo Braga (MDB) e, pasme, Luís Roberto Barroso, o do senador Ricardo Ferraço (PSDB).

A presença de Barroso, notório defensor das prerrogativas do MP, nesse time sugere uma disputa entre os ministros ativistas pelo controle da causa. Na decisão em que mandou arquivar o inquérito contra o senador tucano do Espírito Santo citado como beneficiário de caixa dois da Odebrecht, o ministro justifica-se: "O dispositivo legal não obriga o juiz a só proceder ao arquivamento quando for este expressamente requerido pelo Ministério Público, seja porque cabe ao juiz o controle da legalidade do procedimento da investigação; seja porque ao Judiciário, no exercício de suas funções típicas, não se submete à autoridade de quem esteja sob sua supervisão".

É no efeito cascata da decisão que Silvana Battini, procuradora da República e professora da FGV-Rio, vê as consequências mais danosas da decisão. Juízes de primeira instância, que já foram fortalecidos pela restrição do foro, passam a ter ainda mais prerrogativas sobre os inquéritos. A ideia de restringir as investigações a um ano, nas contas de Vladimir Aras, não teria permitido a Lava-Jato.

Num apelo ao interesse da população em preservar operações do gênero, o presidente da associação nacional dos procuradores, José Robalinho, vai lançar uma campanha nacional na tentativa de tirar, da disputa, o véu corporativo que a encobre.

O MP não tem as mesmas prerrogativas do Congresso que, saqueado há muito mais tempo em suas prerrogativas, começou a legislar contra o ativismo supremo ao aprovar projeto que impede que uma única toga invalide lei aprovada por 513 eleitos.

Além de não poder legislar, o MP terá dificuldades de encontrar, no Congresso, quem se insurja contra a prescrição mais curta de inquéritos. Ainda resta entrar com agravos regimentais, como já o fez em relação a Eduardo Braga. Mas tudo pode esbarrar no plenário amarelo. Restam as ruas, que já salvaram os procuradores uma vez. Desta feita, a nova ofensiva encontra estudantes em férias e um país que, depois de perder de goleada muitas das apostas que fez desde que saiu às ruas, hoje está recolhido em frente à TV na expectativa de, pelo menos, ver a bola na rede certa.

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