- O Globo
A recente condenação do Estado brasileiro pela tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, durante a ditadura militar, veio lembrar o que alguns ainda querem negar — que crimes contra a humanidade eram então cometidos por torturadores, um dos quais é hoje exaltado por um candidato à Presidência da República.
A família Herzog teve que recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos para obter o que, por 43 anos, não conseguiu aqui. A versão oficial do assassinato era uma farsa segundo a qual ele se suicidara enforcando-se com o cinto de seu macacão (que não tinha cinto) no DOI-Codi paulista, um centro de tortura do II Exército, onde se apresentara conforme prometera na véspera aos policiais que foram intimá-lo na TV Cultura, onde era diretor de jornalismo. Podia ter fugido, mas Vlado explicou aos companheiros de trabalho: “Não tenho nada a temer. Amanhã me apresento, esclareço tudo e volto para casa”.
Naquele sábado mesmo, ele foi torturado até a morte por volta das três horas da tarde. Os outros dez jornalistas que estavam presos lá acompanharam do lado de fora da sala o desenrolar da sessão — o rádio ligado a todo volume, as pancadas, os gemidos, os gritos fortes no começo, depois sufocados, finalmente silenciados. “Eles queriam silenciar Herzog”, contou mais tarde o cardeal D. Paulo Evaristo Arns, “e encheram sua boca com lã, também para fazê-lo sofrer.
Ele era cardíaco, e o coração parou, e não conseguiram mais reanimá-lo”. Durante os dois anos em que trabalhamos juntos, produzimos não só algumas matérias de que me orgulho, como construímos uma bela amizade. De 15 em 15 dias, eu ia a São Paulo pela revista e às vezes dormia em sua casa para conversarmos até de madrugada sobre pautas, matérias, movimento artístico. Raramente falávamos de política. Por isso, a sua morte me pareceu mais estúpida.
Ele foi morto pelo que não fazia. Ele não era um militante, não usava a profissão para contrabando ideológico, uma tentação daqueles tempos de sufoco. Ao contrário — e essa era a mais admirável de suas virtudes profissionais — Vlado não usava o jornalismo como pretexto político; acreditava na informação como força transformadora. Quer dizer: mataram a pessoa errada. Como se houvesse uma pessoa certa a matar.
Naqueles tempos de horror, difíceis de viver e trabalhar, Vlado soube viver, trabalhar e morrer com dignidade. Para mim, ele ficou como um mártir da abertura. Foi a partir do choque causado por sua morte — com toda a indignação e revolta que espalhou — que a imprensa brasileira tomou coragem de avançar até o horizonte do possível.
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