"Para fazer mudanças mais profundas, o Brasil precisa de lideranças que reflitam a emergência de uma nova sociedade"
"Políticos, jornalistas e intelectuais ficaram ligados na TV por São Bernardo, mas tinha mais gente vendo o jogo do Palmeiras"
Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico
SÃO PAULO - "Na história, quando se pensa que acontecerá o inevitável, ocorre o imprevisto." Ao longo de 238 páginas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ora se rende ora se debate com a ideia-chave em novo livro, "Crise e Reinvenção da Política no Brasil". É a uma sociedade "mais forte porque desorganizada" que atribui possibilidades e riscos de uma crise cujo desfecho diz ser difícil prever.
As reflexões do ex-presidente foram colhidas, de setembro de 2017 a janeiro deste ano, em conversas com Sérgio Fausto, superintendente do instituto que leva seu nome, e Miguel Darcy, diplomata e seu assessor internacional. Delas emerge a ambiguidade da conjuntura: o indivíduo se fortaleceu frente ao Estado, mas a sociedade, sem o filtro dos partidos, se tornou mais vulnerável a aventureiros despreparados para o exercício do poder. E não apenas no Brasil.
O relato de sua passagem pelo poder está para ser concluído com o lançamento, talvez só em 2019, "quando já tiver passado o interesse pela sucessão", do quarto e último volume dos "Diários da Presidência". Já nas primeiras páginas de seu novo livro estampa a autocrítica do que deixou de fazer como senador, ministro e presidente da República. Com esse habeas corpus preventivo, põe-se a criticar a passagem do PT pelo poder e a tratar do porvir, a começar de tarefas historicamente retrancadas no Brasil, inclusive em seu governo, como a de impor concessões mais amplas àqueles que ganham mais.
A "utopia viável" com a qual conclui suas reflexões passa ainda pelo combate à impunidade, que hoje diz não ser mais um valor da classe média abastada, mas da maioria da população que vê se esvaírem os recursos de políticas públicas. É o apego ao oxímoro que parece levá-lo, nesta entrevista, a concordar mais com o ministro Luís Roberto Barroso, indicado pela ex-presidente Dilma Rousseff, do que com o ministro Gilmar Mendes, seu escolhido para a Corte. FHC nega a seletividade da Lava-Jato e defende, em ordem decrescente, seus correligionários Geraldo Alckmin, Aécio Neves e Eduardo Azeredo. No dia seguinte, o Supremo tornaria réu o senador mineiro.
Relativiza tanto a entrega do Ministério da Defesa, criado em seu governo, para um militar quanto o peso das declarações do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, às vésperas da votação do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - "falou para sua tropa" -, e diz que a intervenção no Rio só se justifica se for para pôr ordem na polícia.
Atribui a prisão de Lula à cota do imprevisto da história e diz que seu sucessor jogou bem ao buscar se sacralizar como "uma ideia". Não descarta que um dia, quando o gesto não se configurar como afronta à Justiça, possa vir a visitá-lo na prisão. Foi em seu apartamento, em meio a uma agenda de sucessivas reuniões, com tucanos e o presidente de um grande banco, que Fernando Henrique deu, ao Valor, a entrevista que segue:
Valor: O senhor diz no livro que, na história, quando se pensa que ocorreria o inevitável, acontece o imprevisto. Olhando para 2018, o que lhe parece inevitável e imprevisto?
Fernando Henrique Cardoso: Inevitável é que o Brasil de qualquer maneira vai continuar e tem lá seus valores, que procuro ressaltar no livro. O imprevisto é que, nos dias de hoje, não dá para saber quem vai ganhar. E se ganhar alguém que não tenha capacidade de levar o Brasil para diante? Já passamos por experiências difíceis nessa matéria. Mas na democracia você corre riscos. Espero que a população sinta o momento que estamos vivendo, as possibilidades que temos e que eleja alguém que permita ao Brasil avançar mais. Posso torcer, querer, mas a história, enfim, tem lá seus caprichos, que não são os meus. Nem sempre.
Valor: A derrota do ex-governador Geraldo Alckmin é inevitável?
FHC: Absolutamente não. Porque, primeiro, tem experiência aqui em São Paulo, com um partido que tem uma certa expressão e, segundo, porque acredito que no processo eleitoral seja possível mostrar que precisamos ter rumo e que não dá para você apostar em quem não se sabe o que pensa ou o que fez. O novo é quem está antenado com o que está acontecendo no mundo e no país, que saiba levar adiante. É bastante possível a vitória do governador Alckmin.
Valor: A prisão do Lula é o imprevisível?
FHC: É o imprevisto. Eu nunca imaginei que um ex-presidente com o significado do Lula fosse terminar sendo preso. Não acho bom - não estou criticando os juízes, porque eles têm os autos -, estou falando do significado histórico. Temos, no Peru, vários presidentes presos e um foragido. Alguns conheço, aliás acho que todos. E isso é bom para o país? Não, não é. Agora as instituições têm que funcionar. Os movimentos são muito importantes, mas é preciso também que haja filtros, para a história tomar um rumo e ter continuidade. A Justiça tem sua independência, e isso é inegável. Tanto é assim que você pode ver que, no momento atual, o PT não critica os outros partidos. Eles tentam dizer que há uma conspiração de vocês, da mídia. É importante mostrar que as instituições estão funcionando com independência dos interesses políticos imediatos.
Valor: Mas o PT não faz isso porque quer a solidariedade dos outros partidos, não?
FHC: Não é só por isso. O PSDB e os outros partidos não moveram a ação. Quem moveu a ação foi o Ministério Público. A narrativa fica capenga se disser que foi por interesse político.
Valor: O senhor disse que um líder hoje tem que ser capaz de transitar entre a sociedade e o Estado e entre a cidadania e as instituições. Qual a capacidade de Geraldo Alckmin, Ciro Gomes, Joaquim Barbosa, Marina Silva e Fernando Haddad cumprirem esse trajeto?
FHC: Primeiro, não sei se esses vão ser realmente os candidatos, né? Da minha experiência como presidente e senador sei que o governante que não conhece o Congresso tem dificuldade de fazer aquilo funcionar. Então, é preciso ver, desses aí, quem tem experiência de Congresso. Segundo, a máquina pública tem suas peculiaridades. Se você não souber que as Forças Armadas, o Itamaraty, a Receita Federal têm uma cultura própria, é difícil governar. Os grandes órgãos do Estado simplesmente não obedecem, eles têm uma dinâmica, e você tem que entendê-la. Por outro lado, se você não é capaz de falar com a nação, também é difícil governar. E a nação não são os ricos, nem são só os pobres. No mundo contemporâneo, não basta ao líder democrático ganhar a eleição. Tem que saber lidar com o Congresso, motivar a administração e falar ao país, para ter o apoio. Pela biografia a gente pode ver o que cada um desses aí é mais ou menos capaz, mas não cabe a mim julgar. Cabe ao povo.
Valor: O senhor chegou a ver com bons olhos a candidatura de Luciano Huck. Ele atende a esses atributos de conhecimento do Congresso e da máquina pública?
FHC: Não vi com bons olhos a candidatura do Luciano Huck. Vejo com bons olhos o que é novo na política, assim como o Renova e o Agora. Não fui eu quem lançou o Luciano. É uma boa pessoa, gosto dele, mas tem um papel mais importante como comunicador. Nunca lancei o Luciano porque acho que essas outras características são mais complicadas.
Valor: No julgamento do habeas corpus do Lula, o ministro Gilmar Mendes disse que "a lei já foi usada para dar ao fascismo status de Estado de Direito"; Luís Roberto Barroso disse que "o Brasil está numa encruzilhada para decidir se quer romper ou manter o pacto oligárquico entre políticos, empresários e a burocracia estatal". Com qual das afirmações o senhor concorda?
FHC: Com as duas. A Justiça em certos momentos foi para direita - na Alemanha, claramente. Por outro lado, também é verdade que temos que avançar no processo de ruptura do que o Barroso chamou, aí de "pacto conservador". Estamos numa sociedade que já não é mais a sociedade oligárquica do passado. Embora - e eu digo isso nesse livro -, em vários setores você vê que existe ainda um encrustamento oligárquico. Mas o antigo e o novo convivem, e, não necessariamente, há a substituição completa de um pelo outro. Por isso os dois têm seus lados. Estamos num momento de ruptura de laços antigos, no que diz respeito ao clientelismo, mas o corporativismo prevalece até hoje, a despeito de todas as tentativas de mudança. A um ponto tal que pessoas que se lançaram como "anticorporativos" foram capturadas.
Valor: De quem o senhor está falando?
FHC: Do Lula. O que era o novo sindicalismo, pelo qual me entusiasmei, como tantos outros? Era o sindicalismo que não vinha do que tinha sido feito no tempo do Getúlio [Vargas], que era manipulado pelo Estado e com inspiração fascista. O Lula tem um discurso em que ele diz que "a verdadeira anistia do trabalhador é acabar com a CLT". Bom, depois o que ele fez? Fortaleceu a estrutura corporativista. Não foi o único. A estrutura corporativista não é só dos trabalhadores. É dos empresários também. Muita gente ficou do lado do corporativismo, que acabou por prevalecer. E houve até uma expansão disso. O que fazem os partidos hoje? Eles têm uma carta-patente que recebe recurso público.
Valor: O senhor, no livro, é bem duro com Lula, cita um discurso dele sobre aquecimento global e diz que ele trata os brasileiros como bocós. O senhor cita um discurso sobre aquecimento global pela maneira simplista e errada que ele...
FHC: Não, o que eu disse é o seguinte: que ele deu mensagem certa usando argumentos errados. Mas eu estava querendo ressaltar o oposto, a capacidade que ele tinha de chegar lá, chegar ao que ele queria. Usando argumentos que não se mantêm.
Valor: O senhor acha que ele também tratou os brasileiros como bocós quando disse que tinha se transformado numa ideia?
FHC: Não, aí foi uma esperteza. "Façam o que fizerem comigo, eu sou uma ideia." Qual é a ideia? Não deixou claro. Sacralizou-se. Foi uma técnica de manutenção de imagem. Agora, se os brasileiros vão acreditar ou não, não sei, depende dos outros. Porque em política, você pensa que vem o inevitável, vem o inesperado. Depende qual é o momento, como é que você transforma uma afirmação de alguém noutra coisa e vice-versa... É o jogo do poder, o jogo da política. Não vou criticar alguém que a exerce bem. No caso, ele exerceu bem.
Valor: O senhor diz no livro que "o novo hoje entre nós é que há muita gente poderosa na cadeia". O ex-governador Eduardo Azeredo está aí, denunciado há mais de dez anos e tem se valido dessa tradição protelatória para não ser condenado definitivamente; o senador Aécio Neves, que foi flagrado num grampo pedindo propina e tem escapado no Supremo [no dia seguinte, o senador tornou-se réu]; e finalmente o ex-governador Alckmin, cujo processo foi mandado para Justiça Eleitoral, a despeito de a empreiteira acusada de caixa dois ter obras no Estado de São Paulo. O PSDB escapa desse novo? Por quê?
FHC: Não seria o PSDB, no caso, seria a Justiça que estaria escapando. São três situações diferentes. Alckmin é citado num processo de caixa dois como citado, não há nenhuma conexão de causa e efeito. A Justiça não pode julgar citações. Qual é a prova? Não tem nada. Por que foi para Justiça Eleitoral? Porque é caixa dois. Ele tinha o foro privilegiado, já não tem. Se deixou de ter, alguém vai ter que responder. Onde? Na Justiça em que ele é citado. Isso não é coisa nova nem antiga, é a lei. No caso do Aécio, a citação diz respeito ao que se deu na esfera privada. Não estou defendendo, estou dizendo: ele não deu, "dá cá, toma lá". Por que o [Fernando] Collor foi absolvido no Supremo? Porque o Fiat Elba que ele recebeu foi a troco de nada, não houve peculato. No caso do Aécio, pegou dinheiro emprestado. Você pode discutir por que pedir deste e não daquele... Tudo bem, é um julgamento possível. No caso do Lula é uma outra coisa diferente: é uma acusação que passou pela Justiça, não sou juiz, não li o processo, não vou julgar. Nunca fiz nenhuma afirmação condenando A, B ou C, porque acho que tem que olhar com atenção os autos. Se você pegar meu nome, puser lá na internet, tenho um apartamento em Paris. Tem até fotografia. Nunca tive! Agora, respeito a Justiça. Está decidido, decidiu. Apele-se! Mas são casos diferentes. E, em todos os casos, estamos vendo que, de qualquer maneira, pessoas de grande projeção, de muitos recursos sendo processadas. Isso é importante, porque é novo. E não acho que haja diversidade em função de influência. Pode haver diversidade em função da diferença dos casos.
Valor: E o Azeredo?
FHC: Azeredo está sendo processado. Por que o Barroso tem razão nisso? Porque, efetivamente, tal como a lei existe até hoje, você protela indefinidamente. Mas não é o Azeredo; é todo mundo que tem recurso. Ele é acusado, mas não conheço o processo. Era presidente do partido e eu até dei uma declaração dizendo que devia ser investigado. Qual é a acusação? É dinheiro de campanha que teria sido dado. O que a lei manda fazer, que se faça.
Valor: O senhor diz no livro que a Polícia Federal mudou. Em seus diários se recolhem alguns relatos. Sérgio Motta diz que o Ministério dos Transportes era uma ratoeira. Um senador lhe relata que o Romero Jucá domina a Eletronorte. Em outra ocasião, o senhor diz que recebeu pedidos para ajudar na campanha de [Nelson] Mandela, da Isabel Allende e até de José Dirceu, para campanha de [Luiza] Erundina. Teria sido mais difícil para o senhor governar com a PF de hoje?
FHC: Mas qual é o mal do Mandela pedir que alguém o ajude? Não é crime! Crime é você dar uma coisa em troca da ajuda, ou você obter ajuda em troca de ter feito um favor. A Isabel Allende? A Isabel foi minha aluna lá no Chile, gosto da Isabel até hoje. E quem ajudou a Isabel fui eu! Dei uma bobagem de recurso para ela, meu, pessoal. Qual é o crime? Nenhum [À página 464 do segundo volume dos "Diários da Presidência", o ex-presidente faz o seguinte relato: "Recebi também a Isabel Allende [Bussi], filha de Salvador Allende, que foi minha aluna e é minha amiga. Veio me agradecer uma ajuda que dei para a sua eleição no Chile. Pedi que, do Chile, alguém a ajudasse a que ela tivesse mais condições materiais para enfrentar as eleições. Ela veio com o embaixador chileno em Brasília"]
Valor: O senhor não pediu que empreiteiras os ajudassem?
FHC: Não pedi. A mim ninguém pega com negocio de Polícia Federal. Isso que se tornou generalizado, não era assim. Você pode dizer "Teve ajuda de A, de B"... Ué, é provável. Eu tive, todo mundo tem. Agora, não é pela via de "dá cá, toma lá". O que acho grave é que a corrupção, no Brasil, mudou de escala e de modo de proceder. É dinheiro público que passa para mão de empresas privadas, por interferência do governo, para manter o poder. Não é corrupção de A, B ou C; é uma coisa organizada. Isso é grave. Isso é que está sendo desmantelado pela Lava-Jato, sempre apoiei a operação por isso. Não é porque eu queira alguém na cadeia. É que as instituições precisam ser salvaguardadas. A Lava-Jato pode ter abusos, mas está salvaguardando as instituições. Como é que você vai ter democracia se o próprio sistema no qual ela está baseada, que são os partidos e o voto, é corrompido?
Valor: Essa onda de novas filiações mostrou que as legendas mais implicadas na Lava-Jato foram as campeãs na atração de parlamentares. E provavelmente terão muita força no Congresso. Há um bloco, aí, se formando, liderado pelo PP e pelo DEM, que vai formar um "bunker" no Congresso. Muitos deles foram seus aliados no governo. Como o próximo presidente será capaz de lidar com isso sem ser derrubado?
FHC: Eu faço até autocrítica nesse livro aí. Por quê? Porque fui constituinte. E quando fizemos as regras partidárias, pusemos na Constituição que a criação de partidos é livre; mas nós não pusemos na Constituição o que vem depois. Você acha que existem 26 ou 28 posições políticas e ideológicas no mundo? Esses partidos não correspondem à definição de algum valor. Ainda que seja defesa de um interesse, são agregados de pessoas que se organizam, corporativamente quase - partido nunca pode ser corporação, é quase como se fosse - para obter recurso do Estado. Tá errado isso, mas está abençoado pela ordem existente. Precisamos de uma profunda modificação. Me referi, mais de uma vez, à França na Terceira República. Aí veio uma quebra geral, por causa do [Charles] De Gaulle. Não quero que haja quebra aqui, é preciso que haja reforma. Ficou disfuncional.
Valor: Mas, até a posse do próximo presidente, essas reformas não acontecerão...
FHC: Eu sei. Vai ser muito difícil. Já era, no meu tempo, e muito mais depois. Aumentou muito a fragmentação. Hoje é preciso o que o De Gaulle chamava de "rassemblement". Um ajuntamento novo do Brasil. Acho que a Lava-Jato ajuda nessa mudança, e por isso digo que o Barroso tem razão nesse negócio. Agora, essa mudança não é só de pessoas. É mais profundo do que isso. Você tem uma nova sociedade. E as organizações deixam de corresponder. Pega na Inglaterra, a votação do Brexit não tem nada a ver com o "Labour". Os partidos já não comandam mais. Por quê? Porque a sociedade é outra, e os partidos são formados com a ideia de uma sociedade mais coesa, dividida em classes... Nós não categorizamos sempre "esquerda, direita, esquerda, direita"? Isso não fica inconsistente, frequentemente? Fica, porque a sociedade está mudando. Pra que direção? Sei lá eu! Até agora não dá para você ver com muita clareza que tipo de sociedade está sendo formada, com as novas tecnologias, modos de produção, formas de integração, enriquecimentos, mobilidade... Enfim: isso pôs em causa as estruturas partidárias, não só aqui, mas nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra... Na China não, porque é partido único, é outra regra.
Valor: Essas mudanças na sociedade, talvez se reflitam mais na disputa para o Executivo do que para o Legislativo, não?
FHC: Provavelmente.
Valor: Isso não vai aumentar a distância entre os dois Poderes?
FHC: É possível que isso aconteça. A sociedade vota e esquece em quem votou, mas não esquece do presidente. Aumenta a tensão. Estamos vivendo um momento de dificuldade real. Ou salvaguardamos esse conjunto com alguns valores - inclusive as regras que vão regê-lo - ou esse o conjunto se esfacela. Temos que tentar evitar que isso aconteça.
Valor: De imediato, para quem vier a assumir o poder em janeiro de 2019, o que pode ser feito para evitar um novo impeachment?
FHC: Você tem que falar ao país e mostrar as coisas tal como elas são. Hoje a sociedade só se sente reassegurada quando vê com mais clareza o que está acontecendo. Por que se deu apoio, quase até com certo exagero, ao Ministério Público e à Polícia Federal? Porque estão mostrando uma porção de coisas. Às vezes certo, às vezes errado, mas estão mostrando. Então para chegar à Presidência tem que explicar, "o que vou fazer e por que". Porque você só faz alguma coisa quando tem a sociedade ao seu lado. Dada a estrutura partidária, é a condição para o presidente fazer mais. O governo atual, mesmo sem a sociedade ao seu lado, tem conseguido. Porque conhece bem as entranhas do Congresso. Mas o custo é alto. Não estou dizendo que seja o único a pagá-lo. Todos os governos pagam algum custo, que a sociedade não gosta. Mas pra fazer coisas mais profundas, você tem que mover as pessoas a seu favor. O Brasil precisa de lideranças que reflitam a emergência de uma nova sociedade.
Valor: O senhor diz no livro que "o Brasil evoluiu por conhecer o nome dos ministros do Supremo e não dos generais". Todo mundo ficou sabendo quem era o general Villas Bôas na véspera do julgamento do HC de Lula. O senhor acha que isso foi o signo de um novo país?
FHC: Não interpreto a declaração do general Villas Bôas no sentido de ameaça. Acho que a declaração é pra que não haja ameaças dentro das próprias Forças Armadas. Ele falou, ele é o chefe. E ficou no limite da Constituição. Não é uma mudança, no sentido de uma intervenção militar. É pra que não haja. E, de alguma maneira, tem um apelo implícito aos políticos, ou seja, "organizem-se. Dirijam o Brasil. Reorganizem o Brasil". Houve um chamado, um apelo, "olha, vejam a Constituição".
Valor: Mas o senhor acha que é cabível um general, comandante do Exército, dar conselhos à sociedade civil?
FHC: Não é à sociedade civil; é aos próprios colegas dele.
Valor: Foi um recado para conter a tropa?
FHC: Entendi assim. E só o comandante pode falar, pela hierarquia.
Valor: Quando o general Silva e Luna tomou posse na Defesa se falou que seria por pouco tempo, mas ele já está aí há quase dois meses. Como é que o senhor vê a mudança nesse paradigma estabelecido por seu governo na Defesa?
FHC: Foi muito importante e foi muito difícil criar o Ministério da Defesa. Foi preciso muito trabalho político e paciência pra que a coisa funcionasse, e era simbólico colocar um civil lá. Hoje o simbolismo é menor. Não sei se ele vai ser efetivado ou não, mas muda alguma coisa? No passado mudava, você botar um civil mandando. Agora qual é a reação frente a isso? Não sei o que o atual presidente vai fazer, se vai deixar um civil ou um militar. Mas chegamos num ponto, espero que nos mantenhamos assim, que é quase indiferente um ou outro. Quem manda é o presidente da República. Acho que não vai aumentar o papel das Forças Armadas. Isso seria grave. A Defesa tem um ministro como outro qualquer. Espero que seja assim.
Valor: O senhor não acha que é imperativo, então, que o próximo presidente restabeleça o comando civil do Ministério da Defesa?
FHC: Se fosse presidente restabeleceria. Mas acho que hoje você pode fazer isso com tranquilidade e maturidade. Levei um susto quando tive que demitir ministros militares e não aconteceu nada. E fui o primeiro presidente que tinha sido punido pelo AI-5. Botei um civil na Defesa. Houve militares que queriam continuar no comando, mas o que aconteceu? Nada. Acho que temos que manter esse espírito, não fazer um cavalo de batalha. Se for necessário, que fique claro que a ordem é democrática. Mas não estamos nessa contingência. E espero, ardentemente, que não cheguemos lá.
Valor: O senhor teme que um eventual fracasso da intervenção possa macular o papel das Forças Armadas nesse momento geopolítico tão delicado pro Brasil?
FHC: O Rio já estava sob a jurisdição de uma regra da Constituição que diz que você pode fazer uma intervenção pra manter a ordem. Já tinha GLO [Garantia da Lei e da Ordem]. Depois veio a intervenção. Imaginei que fosse tirar o governador. Não tirou, apenas o secretário de Segurança. Nunca fiz isso. Por quê? Porque interrompe o jogo constitucional. Me lembro que uma vez um governador veio me pedir que fizesse uma intervenção no governo dele, que queria provar que era inocente. Disse "Não vou fazer". A do Rio provavelmente foi feita porque eles acharam importante ter uma intervenção na Polícia Civil. É preocupante quando você usa demais o GLO. Porque é demonstração de que o governo não tem força. O Rio chegou a um ponto tal que alguma coisa tinha que ser feita. A violência é muito grande. E provavelmente a compreensão do governo - estou dizendo coisa que eu não sei - foi: "Olha, com essa polícia não dá, tem que botar alguém pra segurar a polícia". Vai dar desgaste? Política dá sempre desgaste, quando você faz as coisas. O pior desgaste é não fazer, porque quem se desgasta é o país. Se vai fazer, vamos ver se faz ou não faz. Fazer o quê? Mexer na polícia do Rio, mas Exército não é polícia. Não tem a competência e não deve ter. A competência do Exército é outra: defender a soberania. Ou então é guerra, é matar em massa. O caso do Rio é de polícia. Essa intervenção só se justifica se for pra restaurar a polícia na sua função de polícia. Vamos esperar pra ver.
Valor: O presidente a ser eleito vai assumir um Estado pesado demais que sobrecarrega desigualmente a sociedade. O senhor diz no livro que "quem ganha mais terá que pagar mais". Da sua experiência, por que é tão difícil se fazer isso?
FHC: São as corporações, inclusive as da classe média alta, que se defendem, e os ricos, que não querem pagar. Ninguém gosta de pagar imposto. Por que chama imposto? Porque não é voluntário. Você tem que impor. Ninguém quer. Você tem um valor, que tem que ser preservado, que é maior igualdade relativa. Os impostos indiretos são altamente negativos para a população. A "pejotização", que a maioria de nós, e digo "nós", usa - você recebe como empresa pra pagar menos imposto - também está errada. As tentativas de você mudar isso são derrubadas. Porque todos nós, a classe média alta, temos interesse nisso. Então, não é uma luta fácil, mas é necessária. O imposto indireto é muito forte. E quem paga? O povo. Então não há justiça tributária. E nem há um movimento mais claro de entender melhor isso. Porque a tentativa, às vezes, é "aumentar o imposto das empresas". Os americanos fizeram o inverso. Ao aumentar o imposto das empresas, você torna as empresas menos competitivas. Será que não chegou o momento de rever as três alíquotas do IR? A desigualdade chegou a um ponto tal que algo tem que ser feito. E quem é que vai reclamar? Pensamos aqui sempre que só tem prerrogativa os que têm propriedade. É verdade, eles têm. Mas, além disso, várias categorias também têm prerrogativas que não se justificam. Quando você pega a Previdência, não pode ter só o olho no fiscal, mas na igualdade. E é muito difícil mexer. Fere interesses.
Valor: O que terá mais peso no debate eleitoral, a desigualdade ou a corrupção?
FHC: Ambas, porque a corrupção é momentânea, mas efervescente e está na pauta da sociedade: "Estão roubando muito". Esse é o sentimento. E não é uma palavra de ordem, como era no passado, da UDN, dos que representam os ricos. Não. A população sentiu que prejudica o serviço público. A desigualdade é perene. E quando vai para uma campanha eleitoral, a imensa maioria é pobre. Só falar do que interessa aos ricos, não vai dar certo. Tem que falar o que interessa às pessoas. E a maioria quer emprego, decência na vida pública e serviços de qualidade. Quando têm emprego, querem melhor renda; agora, querem pelo menos um emprego com alguma renda. Depois, se possível, melhorar a renda. Querem que pare com a roubalheira e o crime. O crime não é uma bandeira mais da direita, como no passado. É das pessoas que têm medo de ser assaltadas. E quem morre é o pobre. O rico tem guarda-costas, carro blindado; o pobre não tem. Se não falar nessas questões, é difícil ter apoio da população. A população quer ver refletido no candidato o que está sentindo. Que os serviços públicos de educação, saúde, transporte e habitação não têm eficiência. Esse é o problema.
Valor: O senhor acha que a dificuldade de Alckmin de decolar tem a ver com a recusa em entabular esse discurso?
FHC: Não, ele nem começou a falar. Não acho que haja dificuldades diferente das que todos os políticos têm. A campanha vai começar mais adiante. Nós que temos interesse na política - jornalistas, políticos, intelectuais - estávamos ligados vendo o que acontecia em São Bernardo. Mas tinha mais gente assistindo ao treino do Palmeiras. As pessoas estão vendo o que é da vida cotidiana. Não se abriram pra política ainda. Os nomes, nós é que sabemos e falamos. Se Alckmin foi eleito duas vezes governador é porque sabe falar com a população. Qualquer político que tenha tido voto pra ser majoritário sabe que o foi pelo voto dos pobres, e não dos ricos. Se ele só se dirigir aos ricos, perde. Pro povo, é relevante se melhorou ou não melhorou sua vida. Hoje a economia começa a melhorar, mas não chegou ainda ao emprego. Se chegar lá, muda, mas não sei se vai dar tempo.
Valor: Dada a impopularidade do presidente Michel Temer, o senhor acha que um apoio do MDB ao candidato do PSDB, hoje, é desejável?
FHC: A população não funciona dessa maneira. Nós é que funcionamos. A população pensa assim: "Essa pessoa me abre um espaço na vida? Abre pro Brasil? Dá um caminho de futuro"? Quem apoia ou deixa de apoiar, conta menos. Conta você ter tempo pra falar na televisão. As alianças são feitas em função disso. Quando me pedem pra eu apoiar, eu digo "olha, eu posso apoiar, mas não adianta nada". Adianta, pra uma camadinha. "Ah, se tiver o apoio de FH você vai ter futuro"... Isso não é verdadeiro. Quando perdi uma eleição em São Paulo - para o Jânio Quadros, que não era fácil -, o que fiz? Reuni meu partido, na época o MDB. Vários tinham me traído e votado no outro lado. Disse: "Olha, perdi eu. Muito obrigado a vocês todos, independentemente de terem me apoiado ou não". Sabe que eu fazia quando prestava mais atenção a essas coisas? Tirava o som da televisão na campanha. Porque uma boa parte do que você fala não é pela voz. É pelo seu jeito. E aquilo é que pega. O grande líder político da direita foi Carlos Lacerda. Grande argumentador. Conhecedor de muita coisa, literatura, sabia Shakespeare de cor. Voz bonita, bom orador. O Jânio Quadros inventou outra coisa: ele ia para praça pública com uma gaiola e um rato, pra dizer que ia botar os ladrões na cadeia. Usava uma vassoura. Era simbólico. O discurso tem que vir junto com um certo simbolismo. Na academia, você teve uma ideia, sai correndo, põe seu nome embaixo e ganhou; na política, as ideias têm que encarnar em alguém. Marco Maciel dizia, "tem que fulanizar". O intelectual explica uma situação. O candidato simboliza uma situação.
Valor: Uma última pergunta: o senhor pretende visitar o ex-presidente Lula na cadeia?
FHC: Ele nunca me visitou. Eu o visitei. Não cogitei do assunto. Nunca me recusei a conversar com ninguém. Sempre tive relações cordiais com o presidente Lula. Agora, nunca fui à cadeia visitar ninguém. Nem do meu lado, nem do outro lado. Não me coloquei a questão. Não posso dar o valor simbólico de estar contra a Justiça. Quando esse valor não existir mais, quem sabe o que eu vou fazer?
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