sexta-feira, 8 de junho de 2018

José de Souza Martins: Fumar, uma viagem!

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Cidadão prestante, estou mais do que preocupado com o cenário econômico catastrófico. Mesmo sentindo-me enganado, considero cívico pagar impostos, ainda que irritado com os tributos injustos que sustentam mordomias e descabimentos. Peço nota fiscal por tudo, até por maria-mole. Virei um pão-duro fiscal. Há dois anos, recebi de volta R$ 700,00 da Nota Fiscal Paulista. Convidei a família para almoçar fora duas vezes e ainda comprei livros.

Nestes dias, a notícia de que morrem no Brasil 200 mil pessoas por ano em decorrência de enfermidades causadas pelo cigarro me abateu pelo sofrimento que acarretam. Mas também por saber quanto o tratamento desses doentes custa à medicina pública. É muito dinheiro.

Quem adoece e morre de doenças evitáveis, porque voluntariamente optou pelo uso do meio que mata, tem consciente responsabilidade no próprio perecimento. É discutível que alguém tenha o direito de impor aos outros, neste país de pobreza explícita, o ônus de suas opções erradas. Pune gente que tem menos do que quem fuma.

Fui fumante: dois maços por dia, 40 cigarros. Quando criança, o livro didático do 4º ano primário do Grupo Escolar Pedro Taques, em Guaianases, zona leste de São Paulo, era "Uma História e Depois... Outras", de Rafael Grisi. Excelente livro para crianças que, como eu, moravam na roça e caminhavam 16km por dia, entre ir e vir, para frequentar a escola e sair da ignorância. Numa das lições do livro, o professor propunha o cálculo de quantos quilômetros de cigarro por ano fumava um consumidor normal de tabaco.

Adotei esse método de Rafael Grisi que, por coincidência, veio a ser meu professor de didática especial na Universidade de São Paulo, no fim do curso de ciências sociais. Mas, quando decidi parar de fumar, descobri que isso só era possível trocando o prazer do cigarro por um prazer equivalente. Pode ser que haja pessoas que parem de fumar com medo de câncer, de impotência sexual, de enfeiamento da pele. Esses temores, porém, não são suficientes para desencorajar o vício.

Conheci um portador de grave câncer na garganta que, no Hospital do Câncer, grunhia pela ajuda de seu colega de quarto para que lhe acendesse um cigarro. Morreu fumando. O medo da morte não é suficiente para combater o tabagismo.

Antes do recurso final ao método do professor Grisi, fiz de tudo, sem êxito. Primeiro, troquei o cigarro pelo cachimbo. O enorme incômodo de acendê-lo em lugares públicos e o receio de me tornar uma caricatura de Sherlock Holmes me levaram para o nosso caipira cigarro de palha.

Apesar dos esforços de minha tia Rita, ela própria exímia especialista em alisar a palha, picar o fumo, esfarelá-lo na palma da mão, fazer o cigarro com o duplo cuidado de amarrar-lhe no meio uma fitinha de palha, para não se desfazer, e dobrar a ponta para facilitar o início do fogo, não fui adiante. Não consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo: trabalhar e fazer cigarro.

Aconselhado por um amigo médico, passei a tomar café sem açúcar, já que muitos fumantes associam o cigarro ao café. E, também, explicou-me ele, o cigarro ao sexo. Ajudaria se eu conseguisse quebrar o elo entre o cigarro e outros atos da vida cotidiana. Descobri o prazer do café sem açúcar, mas não parei de fumar.

Um comentário na televisão, feito por moça bonita, de que, quando beijava o namorado fumante tinha a impressão de que estava beijando um cinzeiro, fez em mim mais efeito do que as recomendações já recebidas.

Depois de considerar essas várias alternativas, constatei que, no meu caso, cada cinco anos de cigarros eram equivalentes a uma viagem à Europa. Escolhi a viagem à Europa porque, para mim, era ideal quase inalcançável. Se ainda existissem no Brasil trens para viagens de longo curso, eu teria escolhido fazer uma viagem de trem de São Luís, no Maranhão, à Argentina.

Houve época, nos anos 1950, em que havia viagens de trem de São Paulo a Buenos Aires três vezes por semana, através de uma paisagem lindíssima, de que cheguei a conhecer um trecho. Abri uma caderneta de poupança para o dinheiro de cigarro e fósforo. Em cerca de dois anos paguei a meia passagem de minha filha à Inglaterra.

Hoje, cigarros equivalentes aos da marca que eu fumava na época em que parei de fumar custam R$ 8,00 o maço, no meu caso R$ 16,00 por dia. O que me daria uma viagem de ida e volta de São Paulo a Londres ou a Lisboa em seis meses e meio, quase duas viagens por ano. Desde que parei de fumar, o cigarro ficou mais caro e as viagens aéreas ficaram mais baratas. Ficou mais fácil parar de fumar e viajar. E diminuir os custos da saúde pública no Brasil. Sem contar que o mundo é, assim, poupado da fumaça de 1.460 cigarros por ano.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial).

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