quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Cláudio Gonçalves Couto*: Laços de família

- Valor Econômico

Nunca uma família foi tão enredada com a Presidência

Entre 2000 e 2002, Flávio estudava direito e estagiava no Rio de Janeiro. Isso não o impediu de estar simultaneamente empregado na liderança do PPB na Câmara dos Deputados. O PPB de Paulo Maluf também era, à época, partido do pai de Flávio, Jair. E o cargo ocupado pelo filho era antes ocupado por Ana Cristina - então esposa do pai.

Já Fabrício, amigo de longa data do pai de Flávio, foi empregado por ele, assim como sua filha, Nathalia, que depois de assessorar Flávio, foi empregada por Jair em Brasília - sem prejuízo de seu concomitante trabalho como 'personal trainer' no Rio, onde Flávio era deputado. A esposa de Fabrício, Márcia, assim como sua outra filha, Evelyn, também foram empregadas no gabinete de Flávio. Evelyn, aliás, substituiu a irmã, Nathalia, justamente quando essa foi contratada pelo pai de Flávio, Jair, como assessora em Brasília - embora seguisse no Rio, postando selfies com seus clientes.

Michelle também foi empregada no gabinete de Jair e depois se casou com ele. Recebeu em sua conta um cheque de Fabrício - o amigo de Jair, assessor de Flávio, marido de Márcia, pai de Evelyn e Nathalia. Jair disse que o dinheiro era o pagamento de um empréstimo que ele fizera ao velho amigo, mas como não tinha tempo de ir ao banco (não é todo mundo que consegue estar no Rio e em Brasília ao mesmo tempo), a esposa fez isso por ele. Nathalia e a mãe, Márcia (além de outros sete funcionários), também faziam depósitos na conta de Fabrício. Nathalia e Fabrício foram exonerados dos empregos no mesmo dia 15 de outubro - a filha do gabinete do pai, Jair; o pai do gabinete do filho, Flávio.

Raimunda e Danielle também foram empregadas no gabinete de Flávio. Elas são, respectivamente, mãe e esposa de Adriano, ex-policial amigo de Fabrício e homenageado por Flávio com a Medalha Tiradentes. Hoje, Adriano é foragido da Justiça, que pede sua prisão por integrar uma milícia - organização cuja utilidade pública foi exaltada pelo pai de Flávio, Jair. Além de homenagear Adriano, Flávio também congratulou Ronald, seu sócio na mesma milícia - suspeita da morte de Marielle. Tal milícia, aliás, atua em Rio das Pedras, onde consta que ficou escondido Fabrício antes de ir a São Paulo para ser operado e dançar com o suporte de soro fisiológico. Fabrício diz que foi ele quem sugeriu a Flávio que empregasse a mãe e a esposa de Adriano, assim como homenageasse a ele e a Ronald.

Flávio é constantemente referido pelo pai como sendo o filho "01". É o mais velho, tido como o mais sereno e, por isso mesmo, escolhido para chegar ao Senado. Apesar de ser o mais velho dos filhos, ainda é jovem para uma instituição de políticos provectos como a Câmara Alta. Por isso mesmo, já em meio às turbulências, foi mencionado como "um moço que quer trabalhar" pelo experiente Renan Calheiros, que lhe estende a mão. Tendo antes repudiado a possibilidade de que Renan fosse eleito presidente do Senado, Flávio talvez tenha agora de refazer os cálculos, enfraquecido que está pelos problemas em que lhe enredaram. Zelando por seu governo, o pai inclemente sinaliza que pode lançá-lo ao mar.

O filho 02 é Carlos, chamado elogiosamente pelo pai de 'pitbull'. Dado a polêmicas e inclusive aventando a tese de uma conspiração para assassinar o progenitor, foi responsável pela comunicação da vitoriosa campanha eleitoral e cogitado para o Ministério das Comunicações. Mesmo sem ser nomeado, segue eloquente acerca de temas relevantes para o governo do pai, embora seguindo com a vereança no município do Rio de Janeiro, supostamente distante de Brasília - o que, como vimos, não é necessariamente problema para os Bolsonaro e seus prestimosos assessores, exceto quando se trata de ir ao banco.

O filho 03, Eduardo, deputado federal por São Paulo e recordista de votos, era - até antes dos problemas de 01 - a figura mais vistosa da família no novo governo. Ativo na campanha eleitoral e nas relações exteriores (talvez por arranhar o inglês), já se reuniu com Steve Bannon, foi aos Estados Unidos após a eleição (quando pontificou sobre temas de política externa) e seguiu para Davos a convite do Fórum Econômico Mundial - o que dá mostras do reconhecimento de sua centralidade na nova administração. Não bastasse isso, foi importante junto com os irmãos para a indicação de membros da nova equipe governamental.

Como se pode notar, os laços familiares e de amizade são fatores cruciais na trajetória política dos Bolsonaro. Impulsionada pela reputação e pelas conexões do pai, a carreira dos filhos não representaria qualquer ruptura da secular tradição brasileira, tradicionalmente marcada por dinastias políticas e clãs familiares - como o atestam os Sarney, Barbalho, Calheiros, Gomes, Collor, Magalhães, Neves, Cunha Lima, Picciani, dentre tantos outros. Há, entretanto, uma novidade: nunca antes na história deste país um clã familiar foi tão influente diretamente no centro do poder nacional. Noutros tempos, tal presença da família nuclear junto ao centro do poder era possível apenas no nível estadual ou municipal - nunca junto à Presidência da República.

É por isso que a crise que afeta o filho 01 acaba inexoravelmente por abalar o próprio governo do pai. Os fãs do novo presidente se queixam de que se confere importância demasiada ao caso e que não se dá tempo a um governo que mal começou. Ora, mas foi o próprio presidente que levou os filhos, politicamente, para tão perto de si. Como se nota pelo enredo descrito no início deste texto, não é coisa de hoje - foi uma longa construção, que definiu um padrão. E tal padrão, de estabelecer laços e mais laços entre familiares, não se resume à família do presidente (filhos e esposas). Ele também abarca os parentes de apaniguados - como a família Queiroz e os familiares de milicianos homenageados e empregados pelo clã Bolsonaro.

Inevitavelmente, quanto mais o fio do novelo for puxado e os laços ficarem claros, mais a crise transbordará para perto da Presidência. O que a política uniu, não há retórica que separe.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

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