quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Ribamar Oliveira: LRF não impediu a falência dos Estados

- Valor Econômico

"Os tribunais de contas desfiguraram a lei", diz procurador

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), como é conhecida a lei complementar 101, não foi suficiente para impedir a insolvência em que se encontram vários Estados brasileiros. Sete deles já decretaram situação de calamidade financeira. Eles estão atrasando o pagamento de salários de seus servidores e os fornecedores, além de não terem dinheiro para quitar dívidas e realizar ações essenciais que cabem ao poder público. Mais Estados poderão seguir o mesmo caminho, avisam técnicos da área econômica.

Se a LRF estabelece regras duras para o controle das despesas públicas, das renúncias de receita e do endividamento, como tudo isso aconteceu? Em que a LRF falhou? No que ela foi omissa? Para o economista José Roberto Afonso, professor do mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), a pergunta deve ser outra. Afonso, que foi um dos responsáveis pela elaboração do projeto de lei que resultou na LRF, disse que a questão é saber por que não se cumpre a LRF.

"É uma discussão de 'compliance'", observou Afonso, em conversa com o Valor. "Ela passa, no Brasil, pela fiscalização pelos tribunais de contas, pela aprovação das contas pelo Legislativo e, no caso de irregularidade, pela denúncia do Ministério Público e pelo julgamento do Judiciário", afirmou.

Na avaliação do procurador Júlio Marcelo de Oliveira, do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), a LRF foi sendo esvaziada ao longo do tempo. "Os tribunais de contas desfiguraram a lei", sentenciou o procurador, em conversa com o Valor. Ele disse que várias manobras e "maquiagens" elaboradas pelos governadores com o objetivo de fugir dos limites definidos pela LRF foram sendo acatadas pelos tribunais de contas, o que terminou criando falso espaço fiscal, ocupado por novas despesas.

Como exemplo, Júlio Marcelo citou a definição de despesa de pessoal adotada por vários tribunais de contas, que excluíram do cálculo os gastos com inativos e pensionistas. "A despesa com inativos foi considerada em uma conta à parte", explicou. Foi uma interpretação em completa dissintonia com o que estabelece a LRF. Segundo ele, o impacto dessa interpretação nas contas estaduais foi de grande magnitude, pois, em alguns Estados, o número de inativos e pensionistas já é maior do que o de servidores ativos.

Outros tribunais aceitaram excluir da despesa com pessoal os valores relativos ao Imposto de Renda na fonte e à contribuição previdenciária dos servidores. A "maquiagem" mais recente adotada por alguns Estados para fugir dos limites da LRF, de acordo com o procurador, é transferir parte de suas obrigações para sociedades de propósito específico (SPE). Com essa artimanha, os salários pagos para as pessoas que desempenham funções de governo são considerados despesa de custeio, fugindo assim do limite para pessoal definido pela LRF.

Por causa das manobras e "maquiagens", 14 Estados terminaram 2017 acima do limite de despesa com pessoal fixado pela LRF, que é de 60% da receita corrente líquida, de acordo com dados do Ministério da Fazenda.

Com as várias interpretações da LRF dadas pelos tribunais de contas, cada Estado termina moldando a lei conforme suas conveniências, observou Júlio Marcelo. "E isso está ocorrendo com a concordância de quem deveria fazer valer a lei", disse.

Uma avaliação semelhante foi feita pela economista Selene Peres Nunes, que elaborou, junto com Afonso, o projeto da LRF, ainda no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. "Como todas as leis, a LRF depende de fiscalização", disse ao Valor. Para ela, os tribunais de contas foram lenientes e permitiram que a situação se agravasse. "Em vários casos, os próprios tribunais editaram resoluções fazendo relaxamento da lei, principalmente na despesa com pessoal", afirmou.

Isso aconteceu, de acordo com Selene, por duas razões. "Primeiro, porque os próprios tribunais deveriam ajustar as suas despesas com pessoal e a edição dessas resoluções os beneficia", explicou. "Segundo, porque há vínculos políticos com o Executivo que faz as indicações para os cargos de conselheiros". Em alguns casos, observou Selene, há interesse em manter um bom relacionamento com o Legislativo e o Judiciário. "Isso prejudica a isenção das análises que deveriam ser técnicas", comentou.

O atual descalabro das finanças estaduais indica a necessidade urgente de alterar a forma como são escolhidos os membros dos tribunais de contas estaduais. A proposta de emenda constitucional 329/2013, que altera os requisitos para a composição do Tribunal de Contas da União (TCU) e a forma de escolha dos membros dos tribunais de contas dos Estados, do Distrito Federal e de municípios, onde houver, está parada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Se a PEC for aprovada, os tribunais de contas dos Estados serão constituídos por sete conselheiros, sendo um escolhido entre os auditores de controle externo do tribunal, um escolhido entre os membros vitalícios do Ministério Público de Contas, quatro escolhidos entre os auditores substitutos de conselheiro vitalícios e um escolhido pelos conselhos profissionais das áreas jurídica, de administração, economia e contabilidade.

Há aspectos da LRF que precisam ser urgentemente regulamentados. "Após quase 20 anos da aprovação da LRF, o governo federal ainda executa leis que ferem disposições previstas nos artigos 14 a 17 da lei, ocorrendo reduções de receitas tributárias e aumentos de despesas a partir de legislações que não obedeceram a regra de apresentação antecipada, pelo seu relator, de estimativa de impacto como contrapartida financeira ou previsão orçamentária", diz o documento "Panorama Fiscal Brasileiro", entregue pelo Ministério da Fazenda à equipe de transição de governo, no fim do ano passado.

"Tais iniciativas poderiam ser evitadas por meio de regulamentação dos referidos artigos da LRF, via decreto presidencial", informa o documento. No ano passado, o Ministério da Fazenda encaminhou uma proposta do decreto presidencial, que está em análise na Casa Civil. O presidente Jair Bolsonaro deveria assinar o decreto.

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