terça-feira, 30 de abril de 2019

Cristovam Buarque*: Lava-Tudo

- O Globo

O Brasil descobriu a corrupção no comportamento de políticos que roubam, mas é preciso perceber e acabar com as demais formas de corrupção

A Operação Lava-Jato conseguiu o grande feito de despertar uma consciência nacional contra a corrupção no comportamento dos políticos brasileiros. Mas ainda não houve um verdadeiro despertar da consciência nacional contra as outras formas de corrupção.

Já prendemos políticos que desviaram para seus bolsos o dinheiro que deveria ser destinado ao gasto com a população, mas não condenamos políticos que cometem a corrupção nas prioridades, desviando recursos públicos sem consequência social. O gasto de quase dois bilhões para um estádio de futebol em Brasília, a poucos quilômetros de distância de onde vivem dezenas de milhares de pessoas sem saneamento, foi um ato de corrupção, mesmo que não tivesse havido pagamento de propina e roubo de dinheiro para o bolso de políticos.

Mesmo obras necessárias e urgentes implicam corrupção quando seus gastos são elevados pela monumentalidade desnecessária. A maior parte das edificações no Legislativo e no Judiciário carrega a corrupção do desperdício pela ostentação. O mesmo pode-se dizer dos luxuosos prédios do Ministério Público, instituição que luta contra a corrupção no comportamento dos políticos, mas tolera a corrupção nas prioridades e a corrupção do desperdício.

E o que dizer de uma obra necessária que, embora austera, carrega a corrupção da ineficiência pelo descaso com os assuntos e gastos públicos? As ferragens, areia, cimento de obras paradas formam esqueletos da corrupção da ineficiência. Da mesma maneira, há corrupção no relaxamento dos serviços que não atendem bem ao público, por culpa do mau funcionamento da máquina ou pela má postura de servidores.

Merval Pereira: O centro se arma

- O Globo

Lula e Bolsonaro alimentam-se um do outro, e o terceiro turno da eleição está em plena vigência. É nesse ambiente tóxico que a centro-direita tenta se organizar

A busca de alternativas à polarização política não terminou com as eleições, muito ao contrário. Esmagado pela disputa ideológica entre Bolsonaro e o PT, o centro político procura uma saída para o impasse instalado, já que o presidente e seus seguidores continuam a alimentar essa radicalização a fim de manter viva a chama do eleitorado de extrema-direita que forma o núcleo duro de apoio ao governo, cuja popularidade vem perdendo substância.

O PT, no outro extremo, continua empenhado na mesma luta ideológica de sempre, sem admitir seus erros nem fazer uma necessária, mas impossível, autocrítica. A única saída do PT parece ser “fugir para a frente”, fazer de Lula uma vítima de conspiração. Uma vitória do partido seria (será?) sua absolvição política.

As pesquisas atestam uma queda de popularidade de Bolsonaro justamente por dedicar-se mais a cevar seu nicho eleitoral do que a ampliar sua atuação para atender os demais cidadãos que votaram nele por diversas outras razões que não apenas a visão moralista tosca e a guerra ideológica incessante.

Lula e Bolsonaro alimentam-se um do outro, e o terceiro turno da eleição do ano passado está em plena vigência. É nesse ambiente tóxico que a centro-direita tenta se organizar, sem dar chance a que Lula ou Bolsonaro se aproveitem de seus erros para continuarem sua disputa particular. Dois populistas em busca da perpetuação no poder.

Bernardo Mello Franco: Um incentivo às milícias rurais

- O Globo

Com a proposta de Bolsonaro, o fazendeiro que matar um trabalhador rural poderá se livrar de qualquer punição. Bastará que o alvo dos tiros seja rotulado como “invasor”

Jair Bolsonaro recebeu apoio maciço dos ruralistas. Agora usa o cargo para pagar a fatura eleitoral. Ontem o presidente foi a uma feira agrícola e atacou os fiscais do Ibama. Criticou as multas a desmatadores e prometeu “uma limpa” no órgão que protege as florestas.

Num ambiente em que ainda é tratado como “Mito”, Bolsonaro não precisou se esforçar para agradar. Ele sinalizou uma nova interferência no Banco do Brasil para baixar juros cobrados aos ruralistas. Em seguida, anunciou uma espécie de salvo-conduto para o fazendeiro que matar alguém em sua propriedade. “Ele responde, mas não tem punição”, explicou.

Os afagos do presidente às milícias urbanas já eram conhecidos. Agora ele incentiva a atuação das milícias rurais. O Brasil tem uma longa tradição de pistolagem no campo. Com a mudança proposta ontem, os matadores podem se livrar de qualquer punição — desde que o alvo dos tiros seja rotulado como “invasor”.

O discurso de Bolsonaro alarmou religiosos que acompanham os conflitos pela terra. “Não sei se ele percebe a consequência dessas declarações irresponsáveis, que insuflam a violência”, critica a freira americana Jean Anne Bellini, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra. “É um sinal verde para resolver os conflitos na base da força”, acrescenta.

José Casado: Assina, Bolsonaro!

- O Globo

Aconteceu num sábado no Rio, ano passado, uma semana antes do segundo turno eleitoral. O candidato Jair Bolsonaro anunciou uma de suas “primeiras medidas”, promessa repetida desde o início da campanha: “O que eu pretendo, tenho conversado com o Parlamento também, é fazer uma excelente reforma política para acabar com o instituto da reeleição, que no caso começa comigo, se eu for eleito.”

Oito dias depois, estava eleito. Perguntaram-lhe sobre a reeleição e ele fez a primeira ressalva: “A possibilidade de não concorrer à reeleição é se conseguir fazer um acordo para aprovar a reforma política. Não é apenas ‘eu não vou concorrer à reeleição.’”

Já completou 120 dias no poder mas, até agora, ninguém viu ou sabe o destino da promessa, uma das “primeiras medidas” de governo.

Por gestos e palavras, sugere ter se rendido à síndrome do Planalto — transe no qual o presidente, já no primeiro dia, se incorpora num novo mandato. Assim foi com Fernando Henrique, Lula e Dilma. Com Bolsonaro não é diferente.

“A pressão está muito grande para, se eu estiver bem (de saúde), me candidatar à reeleição”, ele contou dias atrás ao repórter Augusto Nunes. Com três décadas na política, e tendo garantido a dinastia na folha do Legislativo, Bolsonaro dissimula sobre a origem da “pressão” para descumprir sua promessa — se íntima, familiar ou dos acólitos.

Carlos Andreazza: O que é o bolsonarismo?

- O Globo

Essa pergunta se tornou frequente desde que me lancei a uma série de artigos em que tento radiografar a força antipolítica que preside o Brasil. A resposta não é banal, embora facilitada pelo estudo da ascensão do que se pode chamar de nacionalpopulismo mundo afora. Está claro, a propósito, que o sumo bolsonarista deriva mais da cepa populista corrente na Europa, notadamente a húngara, do que da singularidade do que exprime Donald Trump, em favor de quem sempre haverá a rede de proteção democrática americana.

O bolsonarismo tem fortuna própria e invulgares recursos de espraiamento. Não pode ser analisado, por exemplo, sem a compreensão da maneira decisiva como a Lava-Jato — por meio de seu subproduto político-eleitoral, o lava-jatismo — ofereceu carne para a campanha, de tessitura bolsonarista, que criminalizou aatividade política, donde se explica o modo como a fé anticorrupção foi equipada partidariamente, isto a ponto de haver sido apropriada pelo novo governo, na estampa de Moro.

O bolsonarismo tem meios e códigos próprios. Como desdobramento do desprezo pela democracia representativa, despreza a instância partidária — descartada como base por meio da qual se aglutinar e financiar, ao contrário da relação entre PT e lulopetismo. A forma bolsonarista de lidar com o PSL é eloquente. O partido consiste numa estrutura para fins meramente utilitários, esvaziado da mais mínima chance de ter caráter e identidade, condição fundamental para futuro despejo. Em matéria de objetivo, porém, o bolsonarismo em nada difere daquele do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado.

Referi-me ao bolsonarismo como força antipolítica que preside o país. Esse motor dirigente não é, contudo, o presidente; mas a mentalidade, a gramática discricionária, que influencia — sem outra comparável — Jair Bolsonaro. O bolsonarismo não é, pois, o governo Bolsonaro, cindido em grupos precariamente arranjados, mas aquilo que o condiciona e detém. Um sistema antidemocrático e anti-intelectual,de índole reacionária e têmpera para a revolução, que se funda em rara capacidade de mapear, acolher e manipular ressentimentos, e que opera sob o combustível da campanha permanente —do conflito constante—em prol de um projeto autoritário de poder, de vocação autocrática, cujo êxito depende da depredação progressiva das instituições republicanas sem, entretanto, prescindir do gatilho legitimador eleitoral.

O bolsonarismo precisa tanto do ímpeto para a fratura, para a desqualificação de símbolos de independência institucional, quanto do voto, ícone da normalidade democrática e mecanismo revigorante para a imagem do líder populista. Sua essência é interventora, centralizadora e intimidadora. Trata-se de um complexo para a ruptura, talvez mais uma orientação discursiva incendiária do que um desejo real de incêndio — algo de norte incontrolável, diga-se, como mostra a lista histórica de revolucionários enforcados pela própria revolução.

Míriam Leitão: Os ruídos da reforma tributária

- O Globo

Uma reforma como a tributária não pode ser divulgada antes que o governo tenha o projeto pronto e saiba explicar e todos os detalhes

O secretário da Receita, Marcos Cintra, disse em várias ocasiões que o governo iria criar um novo imposto, mas só ontem o presidente Jair Bolsonaro ouviu. Talvez pelo fato de Cintra ter citado o exemplo dos dízimos nas igrejas. O secretário já havia citado a economia informal, e até o escambo, para deixar claro que nada escaparia do novo tributo. Dar detalhes de uma reforma ainda embrionária, que não foi amadurecida internamente, sempre gera ruídos. Quando ela se propõe a mudar a estrutura dos impostos, a confusão é ainda maior.

O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, tem citado essa reforma, adiantando alguns pontos. Numa entrevista que fiz com o secretário da Receita, Marcos Cintra, há menos de duas semanas, perguntei como o imposto conseguiria pegar a economia informal, dado que todos os seus pagamentos são sem registro, e como seria a fiscalização:

—A beleza do imposto sobre pagamentos é que ele não precisa de fiscalização. Toda atividade econômica gera um pagamento pela sua própria natureza. Se isso vai pegar todos as transações vai pegar também a economia informal. Mesmo o que for pago em dinheiro, como um carro, em algum momento vai ser registrado e precisa ter o Darf. Até mesmo negócios no exterior. Tendo registro no Brasil, não terá validade jurídica se não tiver passado pelo sistema financeiro brasileiro.

Em outra entrevista anterior, ao “Estado de S. Paulo”, ele disse que até escambo, negociação sem moeda, seria tributado por esse onipresente imposto. O difícil no caso da reforma que está sendo pensada no Ministério da Economia é entender como vai funcionar. A proposta é acabar com um imposto e substituir por outro. Esse tributo sobre pagamentos, que na entrevista à “Folha de S. Paulo” ele chamou de Contribuição Previdenciária (CP), substituiria tudo o que hoje é recolhido pelas empresas para o INSS. Permaneceria apenas a contribuição do trabalhador. Se algo der errado nesse tributo, aumentará o déficit da Previdência.

Hélio Schwartsman: O presidente das pequenas coisas

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro dedica-se a assuntos que não deveriam estar entre suas prioridades

Até as pedras sabem que o sucesso do governo Bolsonaro dependerá da economia, mais especificamente da reforma da Previdência e de outras medidas que destravem o crescimento. Não obstante, o mandatário prefere dedicar suas energias a uma cruzada moralista e a assuntos que, embora não sejam desimportantes, jamais deveriam ocupar o topo da escala das prioridades presidenciais.

Jair Bolsonaro está se tornando o presidente das pequenas coisas. Na semana passada, ele censurou uma peça publicitária do Banco do Brasile fez observações pouco congruentes sobre o turismo gay. Isso foi até a quinta-feira. Na sexta, manifestou apoio a um plano do ministro da Educação de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”.

Uma coisa se pode dizer em favor de Bolsonaro. Ele não comete estelionato eleitoral. Tenta cumprir todos os desatinos prometidos durante a campanha. Não dá para reclamar de ele ser conservador. Ele foi eleito com essa plataforma e, numa democracia, se a sociedade decide coletivamente caminhar para trás, caminha-se para trás.

Ranier Bragon: 120 dias

- Folha de S. Paulo

Não é possível cobrar resultados ainda; um mínimo de compostura, sim

Jair Bolsonaro completa 120 dias de governo. Um tempo curtíssimo para qualquer cobrança de resultados —menos de 10% do mandato—, mas suficiente para a constatação do misto de despreparo com condutas equivocadas que ganhou abrigo no Palácio do Planalto.

Cem por cento das fichas foram apostadas em uma reforma propagandeada como a chegada à Atlântida e em um pacote de mudanças legislativas bancado pela Lava Jato. Contente com que os adultos cuidem disso, o presidente junta-se aos amiguinhos alucinados e vai brincar na sua Disneylândia particular.

Lá, nesse mundo fantástico de gurus improváveis e vilões imaginários, penas voam para todo lado, a toda hora, em um desabrochar de sentimentos inspirados na rainha Vitória ou na rainha Maria.

Seria muito engraçado, e às vezes é mesmo, não fosse o inconveniente de que ali se ruminam ideias que mais parecem saídas de um parque de diversões mal-assombrado.

Como o estímulo à homofobia e ao turismo sexual, prática que sobrevive em vários casos da asquerosa exploração de meninas do Norte e Nordeste. Turismo gay não, mas gringo de boa cepa vir pra cá catar mulher, aí o presidente curte —até porque no seu particular mundo neandertal mulheres não fazem turismo.

Pablo Ortellado*: Não é a economia, estúpido

- Folha de S. Paulo

Governo Bolsonaro dá centralidade política para as guerras culturais

Muitos veem as guerras culturais promovidas pelo governo Bolsonaro como uma agitação estratégica que seria usada como cortina de fumaça para desviar a atenção do público das “pautas sérias”, como a reforma da Previdência e a inação frente ao desemprego crescente.

Ao gerar controvérsia sobre temas divisivos e passionais, os temas realmente importantes escapariam do escrutínio do público.

A tese, porém, não procede. Desde a campanha, Jair Bolsonaro dá prioridade para os temas morais. O governo Bolsonaro é um governo conservador que utiliza de maneira acessória e até mesmo oportunista a agenda liberal —e não o contrário.

Nas eleições, o que vimos foram duas linhas de discurso moral articuladas por uma retórica populista, antielitista: de um lado, críticas à corrupção promovida pelo Partido dos Trabalhadores e outros partidos “tradicionais”; de outro, ataques ao discurso progressista dos movimentos sociais que teriam ocupado
escolas, universidades, os meios de comunicação, as ONGs e as artes.

É contra essas mal definidas elites políticas e culturais que a mobilização conservadora se articulou. Essa é a essência política do governo, e não as reformas liberais.

Joel Pinheiro da Fonseca*: Agenda antieducação

- Folha de S. Paulo

O grande projeto de Weintraub é a guerra ideológica, com total apoio do presidente

O ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez foi tirado do cargodepois de três meses nos quais o ministério simplesmente parou, atolado em intrigas e ressentimentos. Comparada à conduta do atual ocupante do cargo —Abraham Weintraub—, a simples inoperância de Vélez talvez deixe saudades.

Weintraub parece ser mais capaz de agir; devemos ver um MEC mais atuante. Mas ele também indica direções nocivas para a educação brasileira. O grande projeto de Weintraub para a educação é a guerra ideológica. E está decidido a levá-la adiante, com total apoio do presidente.

Um vídeo foi compartilhado pelo presidente da República. Nele, uma aluna de um cursinho privado filma uma conversa com sua professora durante a aula. Não dá para saber direito o que aconteceu. Sabemos que, em um momento, a professora chama Olavo de Carvalho de "anta". De resto, ficamos apenas com as palavras da aluna, acusando a professora de ter gasto 25 minutos da aula do cursinho com uma fala política. Não sabemos o que teria motivado a professora a iniciar essa fala.

Nada ali foi inocente. A estudante, Tamires de Paula, é militante política de direita e se intitula "Secretária-Geral PSL Itapeva". Será que esse showzinho online é preparativo para uma candidatura em 2020? Em breve saberemos. À parte a evidente intenção política de Tamires, contudo, é fato que, se um professor de cursinho gastasse tempo precioso da aula em falas que em nada me ajudassem no Enem, eu também poderia me irritar.

Alvaro Costa e Silva: Método na maluquice

- Folha de S. Paulo

O ministro do Meio Ambiente cuida de tudo, menos do meio ambiente

Lula deu entrevista, e o mundo não se acabou. O ex-presidente mostrou que continua o rei da lábia. Nas duas horas e dez minutos de conversa, só falou do que lhe interessava. De cara boa aos 73 anos, a barba bem aparada, elegante combinação de terno cinza e camisa lilás, jogou no colo dos jornalistas uma manchete bombástica, ao chamar o governo de “bando de maluco”, a qual logo repercutiu na imprensa internacional.

Jair Bolsonaro —que recebeu milhões de votos influenciados pelo antipetismo— não tinha por quê, mas reagiu mal. De rosto crispado, comentou para sua claque: “Pelo menos não é um bando de cachaceiros”. Nas redes sociais, o bolsonarismo foi mais longe: fez subir a hashtag #EntrevistaMarcola, ligando o nome de Lula ao do líder da facção criminosa PCC.

Nenhuma surpresa na malandragem de uns ou no baixo nível de outros. Assim se desenrola o jogo político no país. No nosso caos diário, dá para colecionar as cortinas de fumaça: inexplicável retirada do ar de um comercial do Banco do Brasil voltado ao público jovem; estúpidas declarações sobre turismo sexual; esposas que devem ser submissas aos maridos, segundo a ministra da Mulher; redução de investimentos do MEC em sociologia e filosofia, cursos que têm operações mais baratas e menos estudantes.

Luiz Carlos Azedo: Tropeçar nas próprias pernas

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“O diversionismo do governo se intensifica toda vez que o presidente reitera seu apoio à reforma da Previdência. Bolsonaro cria polêmicas sobre temas que não são prioritários”

O fato mais relevante para a oposição desde a posse do presidente Jair Bolsonaro foi um desperdício de oportunidade: a entrevista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos jornais Folha de S. Paulo e El País. Preso em Curitiba, por lavagem de dinheiro e corrupção passiva, o petista poderia ter feito um mínimo de autocrítica e lançado um chamamento à unidade das forças derrotadas por Bolsonaro nas eleições, em torno de um programa básico. Desconectado da realidade política, porém, preferiu dizer que o país é governador por um “bando de malucos” e manteve prisioneiro o seu próprio partido. Sim, porque o “Lula livre” aprisiona o PT, como o “Viva Prestes” aprisionou a oposição aliancista durante o Estado Novo, até que o velho PCB decidisse entrar na campanha pela criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), encabeçada por Amaral Peixoto e Oswaldo Aranha, no fim do governo Vargas, para lutar contra o Eixo nos campos da Itália.

Entretanto, tropeçar nas próprias pernas não é privilégio. Sem oposição, Bolsonaro faz a mesma coisa, ao insistir numa agenda que acredita majoritária, só porque ganhou a eleição: investe contra os professores, os funcionários do Ibama e do ICMBio, o marqueteiro do Banco do Brasil, os índios, os direitos humanos, a antropologia, a sociologia e a filosofia. Imagina reescrever a história e por aí vai. A agenda da campanha eleitoral era centrada na questão da violência e dos costumes. Bolsonaro acredita que isso vai garantir o sucesso do seu governo, se pagar as promessas que fez no palanque. A eleição já passou, nada disso garante que seu governo dará certo.

Bolsonaro perde o foco nas variáveis que podem mudar o quadro econômico. O PIB recuou 0,1% em relação ao trimestre anterior; o investimento, 0,6%. No cenário mais otimista, o mercado financeiro projeta um crescimento de 1,9% em 2019. O pessimismo dos empresários pode ser mensurado pela chamada “formação bruta de capital fixo” (investimentos em máquinas e equipamentos, construção civil e inovação). Entre o terceiro trimestre de 2013 e o quarto trimestre de 2016, a queda foi 31,6%. Esperava-se uma recuperação maior após o fim da recessão, mas o crescimento foi de apenas 6% nos últimos oito meses.

Para alguns economistas, a opção do governo para aquecer a economia seria cortar mais os juros, em 6,5% ao ano desde março de 2018. Bolsonaro ouviu esse galo cantar e resolveu meter a colher no Banco do Brasil, novamente. Ontem, numa feira agropecuária, pediu ao presidente da instituição, Rubem Novaes, que já provou ser bem-mandado no episódio da campanha de marketing, para reduzir os juros cobrados pelo banco. Como era de se esperar, ações do BB despencaram na Bovespa. No fim da tarde, o porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, “retificou” as palavras do presidente. Está craque na interpretação das suas intenções: “Eu estava lá, me encontrava quando o presidente fez esse comentário com o presidente do Banco do Brasil. Foi um comentário num ambiente muito amigável. Obviamente que o presidente não quer e não intervirá em quaisquer aspectos que estejam relacionados a juros dos bancos que estão, em tese, sob o guarda-chuva do governo”.

Ricardo Noblat: Mais uma trapalhada do pai

- Blog do Noblat / Veja

Governo de brincadeira
Com todo respeito, obviamente o cacete, general Otávio do Rego Barros, porta-voz do presidente da República. Sem essa de “obviamente que o presidente não quer e não intervirá em aspectos que estejam relacionados a juros dos bancos que estão em tese sob o guarda-chuva do governo”.

Todo mundo viu, e quem não viu pode ver nas redes sociais, a gravação da televisão estatal onde o presidente Jair Bolsonaro, durante uma feira do setor agropecuário em Brasília, dirige-se ao presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, e diz:

– Eu faço um apelo para o seu coração e seu patriotismo para que esses juros, tendo em vista que você é cristão, para que esses juros caiam um pouco mais.

O que passou a cair a partir do apelo feito por Bolsonaro foi o valor das ações do Banco do Brasil na Bolsa de Valores. Recuperou-se mais tarde. Lembra algo? A queda do valor de mercado da Petrobras depois que Bolsonaro mandou suspender o reajuste do preço do diesel? Pois ele. Ele não aprende nunca.

Os que o cercam pelo menos aprenderam a corrigi-lo sempre que comete mais uma trapalhada. Como fez o presidente do Banco do Brasil, por exemplo. Para Novaes, Bolsonaro apenas “brincou”. A culpa pelo mal-entendido foi da imprensa “que perdeu o humor”.

Mais uma trapalhada do filho

Aspirante a ministro do pai
Depois de conseguir que seu pai demitisse Gustavo Bebianno, ministro da Secretaria-Geral da presidência da República, e de carimbar o vice-presidente Hamilton Mourão com a pecha de conspirador, o garoto Carlos Bolsonaro resolveu mirar no general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, à qual a Secretaria de Comunicação (Secom) é subordinada.

Eliane Cantanhêde: ‘Vai dar o que falar’

- O Estado de S.Paulo

A agricultura é fundamental, mas nada justifica Bolsonaro agir como Dilma e intervir no BB

O presidente Jair Bolsonaro deu boas notícias ontem a um setor fundamental não apenas para o seu governo, mas para a própria economia brasileira: o agronegócio. A questão é que, ao agradar ao setor, o presidente está desagradando a outros setores. “Vai dar o que falar”, admitiu ele após uma das notícias. Acertou em cheio.

Depois de torrar bilhões de reais da Petrobrás por ingerência no preço do diesel e de dividir o Planalto ao vetar uma propaganda do Banco do Brasil para o público jovem, o presidente voltou à carga ontem contra a autonomia das estatais, aliás, do mesmo BB. Apelando até ao “coração e ao cristianismo” do presidente do banco, pediu a redução dos juros no crédito rural. Essa é uma forte reivindicação do setor, que adorou a iniciativa. Mas o mercado se arrepiou mais uma vez e as ações do banco sofreram.

Bolsonaro também aproveitou a Agrishow, a maior feira de agronegócio da América Latina, para anunciar que enviará ao Congresso uma proposta para isentar de punição o produtor rural que atirar em invasores de sua propriedade. Para o pessoal de Direitos Humanos, corresponde a uma licença para matar. E não só invasores, mas concorrentes e desafetos.

Por fim, o presidente anunciou R$ 1,5 bilhão para a agricultura e avisou que está fazendo “uma limpa” no Ibama e no Instituto Chico Mendes (ICMBio) e adorou a ida de policiais militares para o instituto, anunciada pelo Ministério do Meio Ambiente. Como árbitro nos naturais conflitos entre agricultura e ambiente, o presidente assumiu um lado em detrimento do outro.

Ana Carla Abrão*: Francamente

- O Estado de S.Paulo

Empresas gozarão de um benefício fiscal com base em imposto que nunca foi pago

Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) se arvorou a fazer política pública. Ao determinar que o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de empresas que comprem insumos produzidos na Zona Franca de Manaus seja reconhecido como crédito tributário, o STF ampliou uma política pública cuja eficácia é amplamente questionável e cujos custos, já grandes, passarão a ser ainda maiores. Define-se assim uma nova política de isenção fiscal que nos custará a todos, segundo estudos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 49,7 bilhões pelos próximos cinco anos, além de outras distorções distributivas ainda a serem conhecidas.

A decisão do STF, embora tomada a partir do julgamento de recursos judiciais impetrados pela União, vem em defesa de questões que vão além de sua competência constitucional. Os votos favoráveis à decisão avançam com base em análises econômicas de proteção do emprego na região e do impacto sobre o desmatamento da Amazônia. Por trás dessas análises, estudos esporádicos, com conclusões cuja robustez os ministros certamente não têm como julgar. Daí a importância de se criar a sistemática formal de avaliação de políticas públicas no Brasil.

Políticas públicas podem atuar tanto pelo lado da receita quanto pelo lado da despesa. Pela receita, o sistema tributário de maneira geral, os tratamentos fiscais diferenciados, sejam eles isenções, alíquotas diferenciadas ou simplificadas ou a definição de alíquotas de impostos para cada faixa de renda, são todos exemplos de políticas públicas. Tarifas de importação, fixação de preços e regulação de bens e serviços públicos também são políticas públicas. Todas elas têm impacto direto ou indireto na economia e na disponibilidade de recursos dos entes federados e da sua capacidade de atender às demandas da população.

Andrea Jubé: Aristóteles na caserna

- Valor Econômico

Disciplinas criticadas estão no currículo militar

Capitão reformado do Exército, egresso da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) - formação que propaga e da qual se orgulha - o presidente Jair Bolsonaro afirmou no dia 26, em sua conta oficial no Twitter, que o estudo de filosofia e sociologia é desnecessário e gera prejuízo ao contribuinte.

A afirmação soa como um contrassenso porque, recentemente - há apenas quatro anos - a Aman instituiu o estudo de sociologia no currículo dos aspirantes, por considerá-la essencial para a formação dos oficiais militares.

Bolsonaro postou na rede social que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, "estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)". Ressaltou que alunos já matriculados não serão afetados, mas ponderou que o objetivo "é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte". Listou: "veterinária, engenharia e medicina".

O presidente justificou a medida argumentando que o governo deve "respeitar o dinheiro do contribuinte". Deve ensinar aos jovens "a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta".

A recomendação presidencial volta-se para as universidades públicas, embora a Constituição Federal prescreva, no artigo 207, que essas instituições gozam de "autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial".

Todavia, persiste a dúvida: se a orientação do presidente também se estende à sua escola de origem, igualmente subsidiada por recursos do Tesouro Nacional, relativos ao orçamento do Exército.

Ocorre que filosofia e sociologia são disciplinas inerentes ao currículo de formação dos aspirantes a oficiais na Academia Militar das Agulhas Negras. Ressalte-se, inclusive, que sociologia foi agregada ao currículo em 2015, diante da constatação de que a disciplina contribui para a formação dos militares que querem compreender o mundo pós-moderno.

"O apelo contemporâneo para a capacitação dos oficiais do século XXI para atuarem no terreno humano em meio às incertezas da pós-modernidade é a chave para a inserção da sociologia no currículo dos cadetes", diz a justificativa no site oficial da Aman.

A instituição reforça que a sociologia contribuirá para a "rica aquisição de informações situacionais necessárias para as ações militares", e permitirá aos novos oficiais a tomada de decisões "mais oportunas e adequadas no nível tático".

O estudo da filosofia já integrava o currículo, e segundo a Aman, contribui para a formação moral, para o "desenvolvimento de atitudes coerentes com os compromissos éticos assumidos por todos os oficiais do Exército Brasileiro".

Questões filosóficas
Avesso à filosofia - a despeito do culto familiar e de parte de seus eleitores aos ensinamentos do professor Olavo de Carvalho - o presidente deveria atentar para uma constatação de Aristóteles (384 aC a 322 aC) de que a tendência de um governo, mesmo na democracia, é deteriorar-se, sobretudo quando afloram as disputas de interesses.

Forjado nas aulas de combate, o presidente encontra-se no meio de um campo de batalha, onde justamente seus companheiros da academia militar tornaram-se alvos, por ironia, de um filósofo e seus seguidores.

O que argumentam representantes da ala militar do governo, entretanto, é que os laços que unem Bolsonaro aos militares remontam há quase 50 anos. Esse vínculo também se reporta a um período de provações físicas e emocionais que, em teoria, moldam a alma.

Os generais palacianos foram contemporâneos de Bolsonaro na Aman nos anos 70. O ministro da Secretaria de Governo, Santos Cruz, é da turma de formandos de 1974; o vice-presidente, general Hamilton Mourão, da turma de 1975; o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Floriano Peixoto, concluiu o curso em 1976; e Bolsonaro graduou-se em 1977.

Raquel Balarin: O velho esqueleto que ainda assombra bancos

- Valor Econômico

Validação de créditos do FCVS é pedra no sapato dos bancos

Não é fácil encontrar nos balanços dos bancos, mas está lá. Algumas das principais instituições financeiras do país têm feito provisões para o que é, na prática, uma possível dívida pendente com bancos liquidados na época do Proer. Para quem não se lembra, o Proer foi um programa lançado no governo Fernando Henrique Cardoso para sanear o sistema financeiro, que havia sido fortemente sacudido pelo fim da inflação e acumulava, em alguns casos, várias irregularidades. Foi nessa época que os bancos Nacional, Econômico e Bamerindus, entre outros, foram à lona.

Muitos bancos foram divididos entre a parte boa e a parte "podre". Os ativos saudáveis do Nacional, por exemplo, foram transferidos para o Unibanco, que depois se tornou Itaú. No caso do Econômico, foram parar nas mãos do Excel, que depois foi incorporado pelo BBV e, posteriormente, pelo Bradesco.

Para a parte "podre" dos bancos em liquidação, o Banco Central fez um empréstimo e armou uma sofisticada operação para obter garantias para o dinheiro emprestado. É essa operação que agora dá dor de cabeça aos bancos, ao próprio BC e ao Tesouro Nacional.

Na época, muitos bancos acumulavam créditos contra o FCVS, um fundo criado pelo governo militar para cobrir o saldo remanescente de financiamentos imobiliários. Funcionou como um grande subsídio à classe média: as parcelas dos mutuários eram corrigidas pelo dissídio salarial, e não pelas taxas aplicadas ao financiamento; o FCVS cobria a diferença ao fim do contrato.

O saldo de créditos de FCVS era gigantesco e só foi reconhecido no governo FHC, que estabeleceu prazo de 30 anos (que vence em 2027) para que fossem securitizados, isto é, transformados em títulos emitidos pelo Tesouro, o CVS.

O risco Bolsonaro: Editorial / O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro, novo risco para o mercado de capitais, voltou a assombrar os investidores ao derrubar as ações do Banco do Brasil (BB) e dos maiores bancos privados ontem. O novo desastre foi provocado com poucas palavras, pronunciadas na Agrishow, a grande feira do agronegócio realizada em Ribeirão Preto. Aparentemente sem pensar e sem perceber o peso de suas palavras, o chefe de governo dirigiu-se ao presidente do BB, Rubem Novaes: “Apelo, Rubem, para seu coração e patriotismo, que esses juros caiam um pouco mais”. Nenhuma taxa caiu, mas em poucos minutos despencaram as ações do maior banco estatal, do Itaú, do Bradesco e do Santander. Se o primeiro forçar a redução dos juros em seus empréstimos, as instituições privadas poderão ter de acompanhar essa política. O raciocínio é fácil, claro e justificado pela história recente de intervenções nas estatais de capital aberto.

Ações da Petrobrás já haviam sido derrubadas algumas semanas antes, quanto o presidente da República interveio na empresa para suspender um reajuste do preço do diesel. Conhecida a intervenção, a estatal perdeu num dia R$ 32,4 bilhões de valor de mercado. Ele nunca mostrou arrependimento nem parece ter aprendido algo com essa experiência. Voltou a intervir de forma atabalhoada e voluntarista na semana passada, ao mandar o presidente do BB suspender uma campanha publicitária e demitir do posto o diretor de Marketing da empresa. O executivo Rubem Novaes obedeceu e apoiou a ação do presidente da República, sem questionar se ele poderia intervir na administração do banco. Se aceitou ordem naquela circunstância, por que alguém acreditaria que deixaria de atender ao “apelo” presidencial por juros mais baixos?

O risco Bolsonaro tem-se manifestado em muitas outras ocasiões, por declarações infelizes e até pela mera omissão do presidente em relação a assuntos de importância vital, como a reforma da Previdência.

Não se governa um país com base em preconceitos: Editorial / O Globo

Radicais começam a se impor, e isso cria dificuldades políticas adicionais à reforma

O governo Bolsonaro está no meio de um conflito de grupos que disputam espaço no Planalto, o que não é uma novidade no país. Mesmo em governos da ditadura militar houve fissuras, como a clássica, que acompanha a História do Brasil, entre “desenvolvimentistas”( Rui Barbosa, Reis Velloso, Severo Gomes) e “estabilizadores” (Joaquim Murtinho, Eugênio Gudin, Simonsen).

Mas não há registro, ao menos em passado recente, de choques em que filhos do presidente se envolvem aponto de criticarem o próprio vice-presidente, Hamilton Mourão. O novo alvo é o ministro Santos Cruz, da Secretaria de Governo. Carlos, Eduardo e Flávio são vereador, deputado federal e senador. Têm alguma institucionalidade, mas não podem se esquecer de que são filhos do presidente.

Este núcleo familiar e seus aliados, como o ideólogo Olavo de Carvalho, fazem indicações de radicais de direita para postos-chave, como o ministro da Educação e das Relações Exteriores, que terminam condicionando de forma negativa políticas estratégicas de governo.

Na campanha, o presidente expôs traços fortes de conservadorismo, o que deve ter atraído parte dos eleitores. Não todos. Mas afloram, e cada vez mais, preconceitos, compreensíveis em qualquer pessoa, mas preocupantes quando ameaçam se transformar em práticas do governo de um país com mais de 200 milhões de habitantes, diversificado e urbano.

Palavras do cárcere: Editorial / Folha de S. Paulo

Em entrevista, ex-presidente Lula evita autocrítica e repete tese persecutória

Em sua primeira entrevista desde que foi preso há um ano, concedida a esta Folha e ao jornal El País, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) qualificou de modo um tanto tosco as forças atualmente instaladas no Palácio do Planalto.

A frase de Lula —"O que não pode é esse país estar governado por esse bando de maluco”— reflete, por óbvio, a perplexidade do mundo partidário tradicional com a ascensão de Jair Bolsonaro, abrigado no antes minúsculo e hoje desconexo PSL, cercado de generais reservistas em conflito com militantes de teorias da conspiração.

Tratando-se do PT, vencedor das quatro disputas presidenciais anteriores, o baque parece particularmente desconcertante. O habitual desembaraço retórico de seu líder não produziu uma análise lúcida dos motivos da derrocada, muito menos deixou ver um esboço de agenda alternativa viável.

O ex-presidente deu inequívoca demonstração de poderio eleitoral em 2018, quando, mesmo encarcerado em Curitiba, levou seu candidato ao segundo turno e ajudou a formar uma bancada ainda expressiva na Câmara dos Deputados.

Subsídios são eterna fonte de pressão sobre a União: Editorial / Valor Econômico

Na semana em que o Ministério da Economia divulgou que os subsídios concedidos atingiram 4,6% do PIB, nível crítico especialmente em um ambiente de crescentes pressões fiscais, o Supremo Tribunal Federal (STF) ampliou essas despesas. Em placar relativamente apertado de seis votos a favor e quatro contra, o STF decidiu que empresas de fora da Zona Franca de Manaus terão direito a crédito do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) se comprarem no polo insumos já isentos do tributo. O impacto da decisão aos cofres públicos pode chegar a R$ 16 bilhões por ano e a R$ 49,7 bilhões se a União tiver que devolver o que foi pago pelos contribuintes nos últimos cinco anos.

Esse era um dos julgamentos de questão tributária mais esperados para o primeiro semestre e surgiu de demanda de um fabricante de arames. A decisão do STF significa que, na prática, a aquisição de um produto que não é tributado vai gerar crédito de imposto, beneficiando o comprador do insumo. Como o imposto não foi pago, todos os contribuintes do país vão pôr a mão no bolso para premiar a empresa cliente de Manaus.

Ministros que votaram a favor do crédito argumentaram a necessidade de estimular o desenvolvimento da Zona Franca, onde cerca de 600 empresas funcionam "graças aos incentivos fiscais", como disse a ministra Rosa Weber, e de diminuir as desigualdades regionais. Mas, como apontou o ministro Luiz Fux, o benefício aprovado favorece, na verdade, empresas de fora da Zona Franca, que receberão o crédito do IPI que não foi pago.

O regime especial de tributação da Zona Franca de Manaus foi instituído em 1967 e renovado pelo Congresso por mais 60 anos em 2014. Nesse período todo, a contribuição para a redução da desigualdade foi tímida, de apenas 0,2% (O Estado de S. Paulo, 26/4). Na região Norte, o Índice de Gini era de 0,544 em 2017, o que significa uma desigualdade inferior à média nacional de 0,549. As regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste tinham, porém, índices ainda menores.

Brasil tem 13,4 milhões de desempregados no 1º trimestre, indica IBGE

Por Bruno Villas Bôas | Valor Econômico

RIO - (Atualizada às 9h50) A taxa de desemprego do país ficou em 12,7% no primeiro trimestre de 2019, mostram dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A taxa ficou 1,1 ponto percentual acima da registrada no quarto trimestre de 2018, quando o desemprego estava em 11,6% da força de trabalho. Frente a um ano antes, porém, a taxa de desemprego está 0,4 ponto percentual menor - na ocasião, estava em 13,1%.

O resultado apurado para os três primeiros meses de 2019 ficou ligeiramente abaixo da média das previsões de 25 consultorias e instituições financeiras consultados pelo Valor Data, que apontava para uma taxa de 12,8% no primeiro trimestre deste ano. O intervalo das projeções ia de 12,5% a 13%.

A população desempregada — pessoas de 14 anos ou mais que buscaram emprego sem encontrar — somou 13,387 milhões no primeiro trimestre de 2019. Isso significa um aumento de 10,2% frente ao fim do ano passado, ou 1,235 milhão a mais de desempregados. Em relação ao primeiro trimestre de 2018, o contingente recuou 1,8%.

Ao mesmo tempo, nos três meses até março, 91,863 milhões de trabalhadores estavam ocupados — como empregados, empregadores, servidores públicos, 0,9% a menos do que nos três meses finais do ano passado. Frente ao mesmo período de 2018, era 1,8% maior, ou 1,591 milhão a mais.

O começo de ano costuma ser marcado por dispensas de temporários contratados no fim do ano anterior. O movimento também foi notado nos trimestres móveis encerrados em janeiro e fevereiro deste ano. A lenta recuperação da economia também pesa.

Gilles Lapouge *: Caminhos de Sánchez

- O Estado de S.Paulo

Se Sánchez não formar uma coalizão, a Espanha pode se perder em caminhos perigosos

Eles fazem tudo ao contrário. Espanha e Portugal, enfim, toda a Península Ibérica. A eleição espanhola deixa isto claro. No restante da Europa, partidos de direita e de extrema direita assumem ou rondam o poder, mas os dois Estados ibéricos continuam fiéis aos partidos tradicionais e à esquerda.

Portugal empreende com sucesso há alguns meses uma aventura social-democrata. Na Espanha, o Partido Socialista, de Pedro Sánchez, foi o grande vencedor. Terá 123 dos 350 deputados no Parlamento. Todos os seus rivais estagnaram ou desmoronaram. O Partido Popular (PP), da direita clássica, que tinha 137 deputados com Mariano Rajoy, não terá agora mais do que 66, com o jovem Pablo Casado. O Ciudadanos, de centro-direita, vai se contentar com 57 cadeiras. E o Podemos, da esquerda radical, terá 42.

E o novo partido Vox, que muitos especialistas prenunciavam uma ascensão fulgurante? Não lhe faltavam trunfos: virulência, nostalgia dos tempos de Franco, juventude. E os ventos “da direita” que sopram por toda a Europa deveriam inflar suas velas. O Vox obteve 10% dos votos, um resultado honroso, mas que não vai lhe garantir mais do que 24 deputados. Um resultado mediano, mas não o fenômeno devastador que seus chefes esperavam e longe de se tornar uma força de governo – como a Liga, de Matteo Salvini, na Itália.

Assim, ao grande desejo de renovação que toma conta da Europa, a Espanha resiste. E isto se deve ao talento e à tenacidade de Sánchez, um homem que jamais se deu por vencido, e à sua rigidez. Se em outros países europeus os socialistas tentam evitar o desastre se camuflando como políticos de centro, como foi o caso de François Hollande, em 2015, Sánchez não cedeu.

Medo da extrema direita venceu

Alessandro Soler Especial para O Globo

MADRI - O resultado das eleições espanholas mostrou que o medo representou, como esperado, uma poderosa mola propulsora para o voto. Só não foi o medo que a extrema direita do partido Vox agitou ao longo da campanha. Imigração ilegal e ameaça de ruptura das fronteiras nacionais pelo independentismo catalão, revelaram as urnas, parecem assustar menos o conjunto da população do que o próprio temor de que chegue ao poder uma formação xenófoba, racista e misógina como a liderada por Santiago Abascal.

Isso não quer dizer que o Vox saiu perdendo. Com 24 assentos, a legenda ultraconservadora é a primeira dessa parte do espectro ideológico a entrar no Parlamento desde a redemocratização, há mais de 40 anos. A partir de zonas castigadas pelo desemprego e onde prospera a noção de que os imigrantes chegam para roubar empregos, o Vox liderará um projeto sectário que seu líder, Abascal, vem repetidamente chamando, não gratuitamente, de “Reconquista” — o mesmo termo que designa a expulsão dos muçulmanos da Península Ibérica pelos cristãos ao longo da Idade Média.

Não será, contudo, uma tarefa fácil a dele. Um olhar sobre o mapa espanhol pintado de vermelho deixa patente a força da velha política. No caso, a do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), que, com suas 123 cadeiras, volta a ganhar uma eleição após 11 anos e dá algum alento à social-democracia europeia, em crise em países como Alemanha e França. Na Espanha, repetiu-se a lógica de que, quanto mais participa o eleitorado —75,7% acudiram às urnas, maior percentual deste século —, mais se beneficia a esquerda.

Além da rejeição ao projeto liderado pelo Vox —e, em certa medida, encampado pelo tradicional Partido Popular (de direita e que, com só 66 cadeiras, teve a maior derrota da sua história) —, outra peculiaridade poderia explicar o resultado final de Abascal muito aquém da vitória prevista por analistas conservadores. Trata-se da reduzida, quase inexistente, influência de grupos de WhatsApp e outros serviços de mensagem instantânea na campanha.

Centro-esquerda faz guinada à esquerda na Europa

Por Giovanni Legorano | Dow Jones Newswires / Valor Econômico

Os partidos de centro-esquerda da Europa, que perderam votos recentemente, estão se inclinando à esquerda para recuperar os eleitores da classe trabalhadora que migraram para movimentos de extrema-esquerda e populistas. Essa iniciativa deu resultado nas eleições da Espanha, no domingo, na qual os socialistas arrasaram seus adversários conservadores.

Os socialistas, que governam a Espanha desde junho de 2018, venceram uma competição fragmentada com uma plataforma baseada em direitos para os trabalhadores, impostos maiores para os ricos e proteção do meio ambiente - questões centrais para a base social-democrata do partido. Apesar disso, o PSOE terá de formar uma coalizão com aliados menores para ter maioria no Parlamento.

"As pessoas não conseguem mais se sustentar", disse Antonio Benítez, servidor público, de 57 anos, que vive na região da Andaluzia. "Está na hora de que falem sobre os pilares fundamentais da esquerda, de ser socialista, sem esses desvios para o centro."

Do mesmo modo, partidos de centro-esquerda na Alemanha, na Itália e no Reino Unido estão tentando atrair de volta eleitores que se sentirem traídos por políticas centristas que, acreditam, os fizeram mais pobres e ameaçaram a segurança de seus empregos. Parte desse eleitorado migrou para partidos novos, à esquerda e à direita.

"Nós claramente viramos para a esquerda", disse Pau Marí-Klose, um socialista que se elegeu para o Parlamento espanhol no domingo. "Nossa retórica está altamente carregada com mensagens de esquerda e acrescenta novos temas, como a precariedade e as mudanças climáticas. Fizemos isso para nos aproximar dos setores que nos abandonaram, como os jovens."

Os socialistas conquistaram 123 das 350 cadeiras do Parlamento da Espanha, 85 a mais do que nas últimas eleições, em 2016, enquanto o conservador Partido Popular caiu para apenas 66 vagas, ante as 137 que detinha. O PP perdeu muitos eleitores para o partido Vox, de extrema-direita, que elegeu 24 deputados (não tinha nenhum), graças principalmente à irritação dos nacionalistas espanhóis com as ambições separatistas da Catalunha.

De todo modo, para ter a maioria parlamentar, o premiê socialista Pedro Sánchez terá de construir uma coalizão, que provavelmente será de difícil gestão. A negociação para a formação do governo pode levar semanas. Sánchez pode ainda tentar formar um governo sozinho, sem maioria, mas isso costuma ser instável e durar pouco.

A angústia existencial que aflige os partidos de centro-esquerda da Europa reflete o debate dentro do Partido Democrata dos EUA sobre como responder ao desafio do presidente Donald Trump: ir para a esquerda para ganhar alguns eleitores, com o risco de perder outros, ou mirar no centro? Nas eleições legislativas de 2018, os democratas tiveram uma onda esquerdista.

Joaquim Cardoso: A escultura folheada

Aqui está um livro
Um livro de gravuras coloridas;
Há um ponto-furo. um simples ponto
simples furo
E nada mais.

Abro a capa do livro e
Vejo por trás da mesma que o furo continua;
Folheio as páginas, uma a uma.
- Vou passando as folhas, devagar,
o furo continua

Noto que, de repente, o furo vai se alargando
Se abrindo, florindo, emprenhando,
Compondo um volume vazio, irregular, interior e conexo:
Superpostas aberturas recortadas nas folhas do livro,
Têm a forma rara de uma escultura vazia e fechada,
Uma variedade, uma escultura guardada dentro de um livro,
Escultura de nada: ou antes, de um pseudo-não;
Fechada, escondida, para todos os que não quiserem
Folhear o livro.

Mas, prossigo desfolhando:
Agora a forma vai de novo se estreitando
Se afunilando, se reduzindo, desaparecendo/surgindo
E na capa do outro lado se tornando
novamente
Um ponto-furo, um simples ponto
simples furo
E nada mais.

Os seres que a construíram, simples formigas aladas,
Evoluíam sob o sol de uma lâmpada
Onde perderam as asas. Caíram.
As linhas de vôo, incertas e belas, aluíram;
Mas essas linhas volantes, a princípio, foram
se reproduzindo nas folhas do livro, compondo desenhos
De fazer inveja aos mais “ sábios artistas”.
Circunvagueando, indecisas nas primeiras páginas,
À procura da forma formante e formada.
Seus vôos transcritos, “refletidos” nessas primeiras linhas,
Enfim se aprofundam, se avolumam no vazio
De uma escultura escondida, no escuro do interno;
Somente visível, “de fora”, por dois pontos;
Dois pontos furos: simples pontos
simples furos
E nada mais.

Roberta Sá - Giro

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Opinião do dia: Yascha Mounk*

“Ele se apresenta como o único representante do povo, trata seus adversários como traidores, despreza as regras de convivência democrática, elogia a ditadura. Os sinais são desanimadores. Os brasileiros terão de lutar pela sobrevivência de seu sistema.”

Mounk oferece três conselhos aos oponentes de Bolsonaro: não subestimar sua capacidade e a de seus partidários; unir forças, a despeito das diferenças políticas que possam ter; e apresentar uma perspectiva positiva para o país, em vez de apenas apontar falhas do presidente.

Sendo a doença tão grave como foi descrita, o receituário proposto é exequível e suficiente para a cura a curto prazo? “Não posso prometer um final feliz. Exigirá muito trabalho, mas falamos de um bem maior. Todo esforço valerá a pena para salvar a democracia liberal.”

*Yascha Mounk, cientista político, doutor em Harvard, autor do livro ‘O povo contra a democracia’, em entrevista, Folha de S. Paulo, 28/4/2019;

Fernando Gabeira: O poder briga com a sombra

- O Globo

Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas

O governo deu um passo na reforma da Previdência, mas continua no clima de barraco eletrônico, com grupos internos se atacando.

Não entro em detalhes, nem me interesso por personagens. Persigo um quadro um pouco maior.

Nele, a primeira ideia que surge dessas incessantes brigas é a ausência da oposição, ocupando ampla e seriamente o seu espaço. Na falta dela, o governo não tem com quem brigar e resolve brigar consigo próprio.

A cena agora revela mais abertamente uma tensão entre presidente e vice. É uma dupla singular para quem observa o recente período democrático. Na última viagem a Brasília, o fotógrafo Orlando Brito me mostrou a imagem da posse de Fernando Henrique Cardoso. No carro aberto, o vice Marco Maciel levantava a mão, de olho na altura da mão de Fernando Henrique. Ele não queria que acidentalmente seu braço estivesse mais elevado.

Marco Maciel era rigoroso na interpretação do papel do vice. Entre Temer e Dilma, houve um período em que a relação esquentou, terminando com aquela carta em tom de bolero: você não se importa comigo, sou apenas um vice decorativo.

Era, na verdade, uma carta de despedida. Temer já se preparava para substituir Dilma.

No caso Bolsonaro-Mourão, teoricamente tinham tudo para se complementar. Poderiam ter até combinado uma divisão de trabalho: Bolsonaro falaria para seus adeptos; Mourão faria a ponte com os setores que, por pura rejeição ao PT, votaram sem concordar com tudo.

Cacá Diegues: Abuso de poder

- O Globo

O cinema brasileiro vive um paradoxo. Nunca tivemos tanta qualidade em nossos filmes. Ao mesmo tempo, estamos ameaçados de acabar muito em breve
.
Todo mundo sabe que a cultura é o mais precioso “soft power” que um país pode ter. Um poder capaz de influenciar sem a imposição do mercado ou a violência de uma guerra. E sempre em benefício de sua própria origem. Além disso, a cultura de um país como o Brasil é hoje objeto de uma estrutura econômica cada vez mais ampla e mais sofisticada. Em 2018, enquanto o cultivo, beneficiamento e moagem de café gerava cerca de 400 milhões de reais para a Receita Federal, o arrecadado através da produção cultural chegava a 905 milhões.

Como pode então o poder boicotar ou simplesmente fechar os olhos a essa força espiritual, social e econômica? O que o poder nacional quer da cultura?

Eles não se enganam apenas na nova versão infantojuvenil da Lei de Incentivo à Cultura, ex-Rouanet, tratando a produção cultural com limites e obrigações mercadologicamente inexequíveis, como se o estímulo se destinasse a distrair escolares em férias. Como lembrou a socióloga e jornalista Ana Paula Sousa, o governo se apropria assim de velho discurso do PT, no qual a lei não deve beneficiar “artistas consagrados”. Mesmo que seja verdadeiro que 90% dos projetos propostos nunca passaram do teto estabelecido agora, os outros 10% não precisam ou não merecem ser realizados? A lei então é seletiva?

No cinema, o comportamento sombrio da Ancine nos sugere o pior. A interrupção de sua atividade de fomento, a partir de 15 de abril, como está no documento interno que os jornais publicaram, é simplesmente desastrosa. Mas parece que a paralisia é necessária “para garantir a segurança jurídica dos servidores”. É claro que funcionários públicos precisam da proteção de seus empregos, estamos juntos. Mas por que a “segurança dos servidores” é prioritária, em detrimento dos produtores que trabalham na fabricação de filmes, objeto e sujeito, razão enfim da criação da agência? Uma agência que, desvirtuada desde sua origem, é responsável, ao mesmo tempo, por fomento, regulação e fiscalização, uma espécie de poder único e absoluto na atividade. O que é inacreditável, indesejável e inviável.

Joaquim Ferreira dos Santos: O presidente que virou publicitário

- O Globo

O governo Bolsonaro desconhece todas as boas novidades sociais das últimas décadas. Breve, proibirá comerciais de absorventes femininos

As gotinhas da Esso eram brancas e as crianças Dulcora mais ainda, alvíssimas, chupando eufóricas a felicidade dos drops embrulhados um a um. Não havia diversidade, essa palavra fundamental em 2019, e lá estava nos comerciais da TV a Neide Aparecida anunciando a peruca kanekalon. Sem tatuagem, sem piercing e acima de tudo com uma virgindade à espera do casamento com Cyll Farney, conforme anunciava a Revista do Rádio, ela balançava a cabeça para mostrar que o adereço capilar estava firme. Essa propaganda das perucas Lady é das caricaturas mais risíveis da história. Não era só o cabelo, não era só a virgindade. Era tudo falso.

O Brasil da propaganda, não faz muito tempo, era a mentira mantenedora dos preconceitos nacionais, um país inteiro de cabelos lisos, gente com uma carinha assim fofa, sem homem usando piercing como na propaganda do Banco do Brasil que Bolsonaro proibiu. Preto na propaganda só os soldadinhos feitos com palitos dos fósforos das marcas Olho, Pinheiro e Beija-Flor.

Era um país em que mulher não abria conta em banco e nos comerciais só aparecia cuidando das prendas do lar, como a Dona Ermelinda, a velhinha que saía correndo feito uma louca pelas ruas do Rio porque precisava aproveitar a liquidação de flanelas, lãs e cobertores das Casas Pernambucanas. Mulher de verdade posava sorridente ao lado do novo orgasmo daquele ano, um pote de gelatina framboesa da Royal. Não fazia cara de "diva irritada", como pede a propaganda censurada do Banco do Brasil. Mulher de família fingia-se de mãe extremada e bibelô. Mentia a depressão.

Rosiska Darcy de Oliveira: O naufrágio do Rio

- O Globo

O Rio é todo ele um monte de escombros, uma gigantesca Muzema

Como um barco naufragado cuja carcaça se arrebenta contra as pedras, o Rio de Janeiro continua lá, encalhado em berço esplêndido, largando pedaços a exemplo da ciclovia da Avenida Niemeyer, desfazendo-se ao sabor de chuvas e marés, metáfora perfeita do destino infeliz dessa cidade.

Não, o Rio não continua lindo, apesar das tardes de abril. Tornou-se uma cidade trágica, em que a morte é banal e o sangue tem pouca tinta, onde a violência é a lei, a mesma, de bandidos e policiais. Onde o medo nosso de cada dia nos faz estrangeiros a nós mesmos, os cariocas que já fomos tão alegres e esperançosos.

Somos governados por uma mistura de fanatismo religioso e hipocrisia, pelo cinismo de uma impassível máscara funerária diante do horror das casas inundadas, da desgraça das famílias soterradas pela indiferença e desprezo de milícias militantes e seus simpatizantes. Como se já não bastassem os territórios ocupados pelo tráfico, os fora da lei fizeram do Rio sua terra de eleição. O Rio, a capital de um estado com cinco governadores já presos.

O Rio é todo ele um monte de escombros, uma gigantesca Muzema onde caímos todos no conto do vigário, literalmente. Quem não gostar queixe-se ao bispo, o gélido bispo que chama a tempestade de chuvinha corriqueira, aquele mesmo que se elegeu para cuidar das pessoas.

*Denis Lerrer Rosenfield: A questão indígena

- O Estado de S.Paulo

Tribo paresi (MT) quer progredir e decidir seu destino, sem depender da tutela do Estado

A questão indígena é um dos temas mais apaixonantes pelas emoções que suscita, entrando em linha de conta tanto o desconhecimento da situação quanto considerações sobre a liberdade de escolha dos indígenas, passando pela atuação de ONGs e dos mais diferentes tipos de interesse. A ignorância ou a má-fé não deixa de ser um desses seus elementos.

Segundo dados do IBGE, a população indígena no País é constituída por aproximadamente 1 milhão de pessoas, pouco mais de 550 mil em zona rural. O caso de índios urbanos, observe-se, é de natureza diferente, por não envolver demandas fundiárias, mas de saúde, educação, trabalho, condições dignas de vida e luta contra o preconceito. Chega a ser uma vergonha que o País não consiga atender dignamente um contingente tão pequeno de pessoas, pertencentes originariamente a esta terra.

Do ponto de vista territorial, a população indígena restante ocupa em torno de 118 milhões de hectares, correspondentes a 14% do território nacional. Se fôssemos seguir as ONGs indigenistas, deveriam ocupar, segundo cálculos preliminares, 24% do território. Faz sentido?

Isso não significa, evidentemente, que nenhuma área deva ser doravante demarcada, mas um diagnóstico da situação deveria analisar a especificidade de cada tribo. Não é o mesmo uma tribo perdida, sem nenhum contato cultural, na Amazônia, os conflitos ditos fundiários em Dourados e em Mato Grosso do Sul e os paresis em Mato Grosso.

Cida Damasco: Ajuste com justiça

- O Estado de S. Paulo

Desafio da Previdência é unir ganho fiscal e redução de desigualdades

Em matéria de números, começa a ficar claro até onde pode ir a reforma da Previdência. Ainda que Bolsonaro, como de costume, diga que suas declarações não foram bem interpretadas e a equipe econômica mostre-se contrariada com a inconfidência do presidente, parece que o governo está mesmo preparado para “aceitar” uma reforma com “abatimento” de uns R$ 400 bilhões nas contas de ganho fiscal em dez anos. A proposta do Planalto, tal como ela desembarcou no Congresso, representa uma economia de R$ 1,23 trilhão. O aumento em relação ao R$ 1,1 trilhão em relação ao cálculo anterior seria explicado pela atualização dos dados com base na nova Lei de Diretrizes Orçamentárias e pelo adiamento da entrada em vigor das mudanças, de 2019 para 2020.

Mesmo antes de mais esse escorregão de Bolsonaro, os agentes do mercado já vinham trabalhando com números mais modestos – ou realistas, dependendo do olhar –, nas proximidades de R$ 600 bilhões a R$ 700 bilhões. E não pareciam impressionados com o “tudo ou nada” do ministro Paulo Guedes, que oficialmente não arredava pé da marca do R$ 1 trilhão. Como se, abaixo disso, o destino da economia e, por tabela, do País fosse simplesmente o caos.

Trilhão para cá, trilhão para lá, o fato é que a avaliação da proposta do Planalto para a Previdência torna-se muito pobre, se for circunscrita a números – embora eles sejam indicadores importantes da viabilidade da arrumação das contas públicas. Espera-se um debate exaustivo sobre quais serão e sobre quem recairão as mudanças. Afinal de contas, conforme Guedes tem insistido, trata-se não apenas de promover ajuste fiscal, mas de desmontar a fábrica de desigualdades que caracteriza a Previdência no Brasil. Argumento que, se não é suficiente para conquistar forte adesão à reforma, serve pelo menos para enfraquecer as resistências de alguns setores.

A grande questão, nesse ponto, é que conciliar os dois objetivos não é tarefa simples. Um artigo do economista Luiz Guilherme Schymura, publicado no blog do Ibre/FGV, dá uma boa mostra das contradições embutidas nessa combinação. Vamos destacar duas:

Marcus André Melo: A armadilha da culpa

- Folha de S. Paulo

Por que Bolsonaro não se engaja na reforma da Previdência?

Quando Bolsonaro afirmou que “no fundo, não gostaria de fazer a reforma da Previdência”, expressou o dilema comum a qualquer governante frente a reformas deste tipo. A forma clássica de ocultar a responsabilidade política por reformas impopulares é delegando-a a terceiros. E isto é o que estamos observando.

Reformas da Previdência têm custos concentrados e benefícios difusos. Elas impõem perdas a grupos específicos, mas o crédito político sobre seus benefícios de longo prazo dissipam-se devido a maior visibilidade de perdas versus ganhos. As reformas são ditadas pela elevação da expectativa de vida da população e pelo legado anterior da política. Se adiadas por muito tempo (devido a populismo macroeconômico e/ou boom de commodities), não há como fugir delas.

O cientista político Kent Weaver refere-se à dinâmica política destas reformas como a “política da imposição de perdas” em que os governos buscam escapar da armadilha da culpa” (“blame trap”).

Assim a reforma (PEC 6/2019) foi apresentada como do ministro Paulo Guedes, não do presidente. A barganha legislativa, por sua vez, foi delegada à Casa Civil e aos presidentes das casas legislativas.

Mas obviamente a questão se complicou porque Bolsonaro ascendeu à Presidência rejeitando fortemente a barganha congressual. Em suma, a estratégia dotada pelo governo visou minimizar a exposição do presidente tanto na autoria da proposta quanto na barganha necessária para sua aprovação. No entanto esta terceirização da responsabilidade pela aprovação da reforma esbarrou em Rodrigo Maia. Embora seja uma janela de oportunidade para que ele exerça liderança —o que tem ocorrido—, ela é potencialmente custosa.