- O Globo
Merkel tende a tratar com o devido desdém a incivilidade, vulgaridade e insegurança de Bolsonaro em relação a ela
Em 1989 Angela Merkel era uma divorciada de 35 anos que jamais fizera um pronunciamento político em público. Física com especialização em química quântica, tocava a vida fechada na Alemanha Oriental (comunista). A queda do Muro de Berlim, acontecimento épico que em novembro próximo terá o 30º aniversário festejado à altura, permitiu a Merkel ascender numa democrática sociedade alemã reunificada, e chegar ao topo do poder. Só que neste seu quarto mandato a sua própria saúde, a do país que governa e a do mundo à sua volta encontram-se em condições mais claudicantes. Ainda assim Merkel continua sendo a única chefe de Estado ou de governo deste terceiro milênio merecedora da qualificação de estadista.
E por isso tende a tratar com o devido desdém a incivilidade, vulgaridade e insegurança do presidente do Brasil em relação a ela e à nação alemã.
Difícil dizer o que foi mais feiúsco no episódio de dias atrás, quando Jair Bolsonaro respondeu, no estilo “impromptu calculado” que agora virou regra, à decisão da Alemanha de suspender a doação de R$ 150 milhões para a proteção ambiental da Amazônia. Talvez o linguajar: “Pega esta grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui” é chulo. Ou o riso laranja-mecânica também asqueroso com o qual Bolsonaro costuma encerrar suas tiradas. Ou ainda os figurantes do governo com cara de paisagem que assistem a estas frequentes scenate presidenciais. Decididamente, um conjunto pouco edificante.
Daí a resposta alemã ter vindo não da chancelaria em Berlim, mas através de uma plataforma mais adequada: a sátira política. Um programa humorístico na principal rede de TV pública alemã retratou o chefe da nação brasileira, em horário nobre, como “bobo da corte do agronegócio”. Com direito a uma fotomontagem na qual ele enverga a inesquecível sunga verde do também inesquecível personagem Borat, criado por Sacha Baron Cohen, além de uma paródia da música “Copacabana” rebatizada Bolsonaro-Song. Tudo meio tosco, como é o senso de humor germânico. Mas tosco por tosco, tem tudo para alimentar as redes sociais e o rancor bolsonarista.
Merkel, enquanto isso, continua a “governar pelo silêncio”, para usar o termo cunhado por seu biógrafo Dirk Kurbjuweit. Problemas graúdos não lhe faltam — como salvaguardar a Europa tendo Donald Trump em Washington, Vladimir Putin em Moscou e Xi Jinping em Pequim, ou como estancar o declínio econômico alemão, tourear as consequências do influxo migratório, encaminhar a sua sucessão marcada para 2021, ou tratar dos tremores incontidos que hoje a obrigam a ficar sentada durante cerimônias de hasteamento da bandeira. Com este pano de fundo de responsabilidades não deve ser difícil relevar descortesias de quem, como Bolsonaro, a toda hora precisa proclamar “Quem manda sou eu” e desafia a si próprio para não ser, como diz, “um presidente banana”.
Merkel tem por mantra falar apenas o necessário e encarar problemas como “tarefas”, com metodologia trazida da formação científica. Seu processo decisório de avaliar todas as opções é notoriamente lento e cauteloso, motivo de robustas críticas. Ela é assim desde criancinha. Um perfil de 2015 publicado na “Vanity Fair” conta que durante uma aula de natação quando menina ela permaneceu de pé por 45 minutos na borda de um trampolim de 10 metros com o olhar fixo na água da piscina. Só saltou segundos antes da sineta tocar anunciando o término da aula.
Já Bolsonaro sai por aí “montado num jet ski desgovernado”, expressão do colunista Bruno Boghossian, roubando o Brasil de sua melhor, e talvez única, possibilidade de ter relevância mundial: o de agente crucial na defesa global do meio ambiente. Potência militar não devemos querer ser, e potência econômica não conseguiremos, mas o país teria o perfil certo para uma arrancada ambientalista. Teria.
Diz o ditado que mesmo quando você cega uma pessoa, você não consegue condená-la a não ter visão. O inverso também é verdadeiro. Quando um líder não tem visão, seu par de olhos que enxergam acaba sendo de pouca serventia. Quando Jair Bolsonaro vê Angra dos Reis, enxerga uma futura Cancún. Quando Donald Trump pensa na Groenlândia, vê uma oportunidade de negócio: esta semana ele teria cogitado fazer uma oferta de compra daquele território autônomo pertencente à Dinamarca. A gigantesca ilha de mais de 2 milhões de km quadrados fincada entre os oceanos Atlântico e Ártico, entre o Canadá e a Europa, tem recursos naturais cobiçáveis como carvão e urânio, e abriga uma base aérea americana. (Outro ocupante da Casa Branca, Harry Truman, já tentara adquirir o território em 1946). “Só pode ser brincadeirinha de Primeiro de Abril na data errada”, comentou o ex-primeiro ministro dinamarquês Lars Lokke Rasmussen.
Pelo jeito vivemos tempos de Primeiro de Abril o ano todo. Perigosos.
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