- O Estado de S.Paulo
Há de ser possível relegar os extremistas às margens e minimizar o seu impacto
Em situações críticas, quando tradicionais correntes constatam a presença disruptiva de um novo adversário percebido como ameaça a si próprias e às instituições, o tema das frentes reaparece mais ou menos ritualmente, e é natural que assim seja. Não é certo que triunfem ou sequer alcancem seus fins imediatos, assim como não escapam da incompreensão de parte dos contemporâneos, por vezes atônitos com o exercício de uma das dimensões essenciais da política, que, afinal, não vive só de conflitos nem constrói muralhas da China. Adversários leais, sem minimizar o que os divide nem renunciar à própria identidade, conversam, estabelecem pactos, delimitam o terreno de luta, pondo a salvo o que lhes parece patrimônio comum e que permitirá mais adiante a continuação civilizada do conflito.
A moderna história política brasileira conheceu movimentos dessa natureza. Relembrá-los pode servir como alento para os democratas convictos e, ao mesmo tempo, antídoto contra a ação de quem deliberadamente quer repetir indefinidamente os choques mais óbvios que assinalaram os 21 anos do regime de exceção, ceifando vidas e turvando o horizonte do País. Valorizar aqueles movimentos pode ser um guia para a ação em ambiente distinto, como este no qual nascem, ou dão sinais de querer nascer, as inéditas antidemocracias do século 21.
Não teve êxito algum, para dar um exemplo que, apesar do malogro, merece reverência, a frente imaginada por um homem de raro talento, o petebista San Tiago Dantas, às vésperas de março de 1964. A frente que propôs, numa corrida inglória contra o golpe iminente e a própria doença que o mataria, deveria reunir a maior parte do seu PTB, mas também políticos do PSD e até os udenistas “bossa nova”, em defesa da legalidade do mandato do presidente Goulart e de reformas consensuais, que levariam o País até as eleições de 1965 sem quebra da normalidade constitucional - esse bem precioso que nos obriga a cuidar permanentemente da saúde das instituições, dos partidos e do Parlamento.
A frente costurada por Dantas fracassou depois de alguns meses de frenéticas negociações, sem conseguir conter o radicalismo generalizado que atropelaria a democracia de 1946. É que quase todos os atores esperavam ganhar alguma coisa com o acirramento da crise, apostando no “dia D” da explosão revolucionária ou, como seria previsivelmente o caso, contrarrevolucionária. Mas Dantas, como contou recentemente o estudo de Gabriel da Fonseca Onofre Em Busca da Esquerda Esquecida (Prismas, 2015), legou-nos, junto com sua derrota política, o conceito de “esquerda positiva”: uma esquerda que, sem renegar a si mesma nem às razões da luta por justiça social, conduz seu combate no campo das instituições e, por isso, admite plenamente a dialética da democracia, estabelecendo alianças e se comportando com lealdade com aliados e adversários.
Há algo desse movimento aliancista na “frente ampla” que, um ou dois anos mais tarde, animaria as conversas e os acordos de grandes líderes civis de então. Esmagada em abril de 1964, como em todo regime de força, a política faria sua reentrada em cena com Juscelino, Goulart e Lacerda, surpreendendo os que, congelados doutrinariamente, não podem compreender as implicações que decorrem naturalmente do extraordinário fato de adversários históricos, mesmo encarniçados, passarem a reconhecer mutuamente a legitimidade uns dos outros. A vida civil, nesse ponto, transforma-se de um modo que não é dado aos dogmáticos de todas as tendências prever e acompanhar.
Se a frente ampla terminou entre os destroços de 1968, um partido-frente marcaria os anos a seguir, firmando-se dessa vez com perseverança e heroísmo - os homens da mal chamada “velha política”, como Ulysses e Tancredo, sabem ser heróis a seu modo, cultivando com mãos de jardineiro a planta tenra da democracia e disseminando com coragem cívica “ódio e nojo” às ditaduras. Estiveram ao lado deles outros expoentes da esquerda positiva, recusando a insensata autodissolução do partido oposicionista, rejeitando o voto nulo e apontando as eleições, não as armas, como a forma verdadeiramente superior de luta. A esquerda positiva foi ao centro, não só no sentido de deixar-se “contaminar” pelos valores do liberalismo político, mas também no de apreender o centro da política, que passava muito longe da atualização do mito da revolução armada - impossível e, sobretudo, indesejável - e consistia na defesa da anistia e da Constituinte, com a participação de todas as forças. A reconciliação dos brasileiros, em suma.
Antidemocratas de novo tipo, aproveitando-se de erros cometidos nestes últimos 30 anos, especialmente pelo principal partido de esquerda, agora dão as cartas, ainda que constrangidos pelos freios e contrapesos do sistema constitucional. O presidente Bolsonaro não esconde a filiação à família dos populismos contemporâneos: uma mistura de nativismo histriônico, subalterno ao trumpismo, instrumentalização de valores religiosos redefinidos anacronicamente e, não em último lugar, submissão a uma agenda radical de mercantilização. Em âmbitos que definem o padrão civilizatório, como ambiente ou direitos humanos, o que se quer afirmar é um individualismo agressivo e, no fundo, niilista, que está longe de ser mera cobertura para a agenda econômica fundamentalista, mas sua necessária projeção num cotidiano tomado pela barbárie.
Dispersa em vários partidos e fora deles, a esquerda positiva tem nova e decisiva oportunidade. A “ida ao centro”, como no passado, servirá para revalidar suas credenciais, influenciando liberais e conservadores fiéis à Constituição e deixando-se por eles influenciar. Não se pode excluir uma frente, ainda que informal, para isolar e derrotar os extremistas. Há de ser possível relegá-los às margens e minimizar seu impacto na vida de todos.
*Tradutor e ensaísta, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira, 2018)
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