- O Estado de S.Paulo
O afeto e a confiança paterna não bastam para habilitar o deputado Eduardo Bolsonaro
O presidente Bolsonaro almeja nomear seu filho Eduardo embaixador do Brasil em Washington. Seu propósito tem suscitado muita polêmica, que passo a examinar.
Nos casos de chefia de uma missão diplomática, a indicação não se circunscreve à esfera do Executivo. Em função da divisão de Poderes, ela só se efetiva com a aprovação do Senado, após arguição do indicado. É de praxe nessa arguição uma exposição das diretrizes que nortearão a atuação do futuro embaixador. Supõe-se que a exposição seja de qualidade e dê conta da multiplicidade das tarefas inerentes ao cargo.
Cabe ex officio ao chanceler dar conhecimento circunstanciado ao presidente das características do seu ministério. Em duas ocasiões no exercício dessa responsabilidade, procurei sempre agregar subsídios sobre o Itamaraty, úteis também em matéria de critérios de acreditação de representantes diplomáticos.
Realcei que o Itamaraty é uma instituição de qualidade da administração federal. Seus quadros ingressam na carreira pelo sistema de mérito. Têm formação profissional que se inicia com o curso no Instituto Rio Branco, aprimorada pela experiência profissional e por vários cursos necessários para galgar postos na carreira.
Por isso os quadros do Itamaraty têm um repertório de conhecimentos e, por obra de sua atividade profissional, detêm a memória da contribuição da política externa para a construção do Brasil. Compartilham um estilo de atuação, assinalador de recursos de competência, que tendem a reforçar a política internacional do País. É um estilo que busca dar vida à síntese formulada pelo Conselho de Estado do Império: “Diplomacia inteligente sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância”. É o que credencia os quadros da carreira para o exercício profissional da função diplomática. Por isso, ainda que a chefia de uma missão diplomática possa ser atribuída a não integrantes do Itamaraty, meu conselho como ministro foi dar prioridade a seus membros, pois no amplo espectro de uma carreira baseada no mérito se encontrariam profissionais qualificados para as diversificadas responsabilidades da função.
A indicação de embaixador de fora da carreira diplomática tem sido exceção. No caso, cabe levar em conta o histórico dos que foram embaixadores em Washington, a começar por Joaquim Nabuco, e recordar os méritos dos não integrantes da carreira diplomática. Entre eles, em distintos contextos, Oswaldo Aranha, Walther Moreira Salles, Amaral Peixoto, Juracy Magalhães. Por isso a indicação de embaixador nos EUA deve recair, e muito especialmente nos que não integram a carreira diplomática, em alguém “que se distinga – no Brasil e no exterior – como uma figura importante da cultura, da economia ou da política brasileira”, como apontou Marcílio Marques Moreira em entrevista a este jornal (16/7), com o saber de quem foi embaixador em Washington e ministro da Economia.
Essa avaliação tem pleno respaldo jurídico, pois o embaixador não é um representante pessoal do presidente. Não é seu preposto. Nos termos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, válida no Brasil, ele é um representante do Estado. Por isso como dizia o clássico Vattel no seu Direito das Gentes, um embaixador deve conhecer o seu país e contribuir para o principal objetivo de um bom governo, que é o de prover as necessidades da nação.
Na avaliação dos critérios de designação de um embaixador me guiei pelo que estabelece a Convenção de Viena, que codificou o essencial das funções de um chefe de missão diplomática. A primeira, e a mais tradicional, é a da representação do Estado. Esta se desdobra numa representação política e jurídica, tem a dimensão de representação simbólica e aponta que um embaixador deve saber exprimir o que seu país, num sentido abrangente, significa para o Estado para o qual foi acreditado.
A segunda é informar apropriadamente ao seu governo o que se passa no país em que está acreditado. Isso requer ir além do que é do conhecimento generalizado e ter relações fluidas com o Executivo. Numa democracia pluralista e federalista como são os EUA, é necessário interagir com o Congresso e os partidos, com os Estados da Federação, com as universidades, a mídia, as ONGs, os think tanks, como esclarece, com o lastro da experiência, Rubens Barbosa em artigo nesta página (23/7).
Churchill observou que a eficiência da informação se mede pela qualidade, não pela quantidade. Exige discernimento. Não deve incidir no pecado mortal da prática diplomática de relatar apenas o que um embaixador julga que o seu governo gostaria de ouvir. São também suas funções a capacidade de negociar, a promoção das relações econômicas, culturais e científicas – o que exige a capacidade de iniciativa e impulsão –, a proteção dos interesses de seu Estado e de seus nacionais.
Não é do conhecimento do País de que maneira o percurso do deputado Eduardo Bolsonaro o habilita profissionalmente para ser embaixador em Washington. Daí a polêmica em torno de seu nome, cabendo ressaltar que o afeto e a confiança paterna não são suficientes para atender aos critérios apontados neste artigo. A isso agrego que não há maior informação sobre como o deputado interpreta os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Entre eles, o da prevalência dos direitos humanos.
A desejável aproximação com os EUA, que ele patrocinaria por seus vínculos de proximidade e afinidade ideológicas com a diplomacia de combate do America First do presidente Trump, tem limite. Foi explicitado por Rui Barbosa, que sempre defendeu a amizade e a colaboração leal com os EUA na política do mundo. Em A Imprensa e o Dever da Verdade (1920), o estadista da República afirmou: “Não quero, nem querereis nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo, ou a sombra dos EUA”.
*Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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