- Valor Econômico
Operação política de Bolsonaro agora lembra a de Mussolini
O soberbo livro “M- O filho do século”, uma biografia romanceada de Benito Mussolini que levou Antonio Scurati a ganhar, no ano passado, o Prêmio Strega, o principal da literatura italiana, tem sido muito usado para traçar analogias entre a ascensão do fascismo na Itália e o que pode estar acontecendo no próprio país de origem do livro, em outras nações e no Brasil, sem que estejamos percebendo claramente. A carapuça serve a várias cabeças.
A leitura impressiona quando se pensa no Brasil, sem que seja preciso forçar a barra em considerar o bolsonarismo como a versão cabocla e contemporânea do fascismo. Banalizar o que foi Mussolini é uma afronta às vítimas do horror da ditadura que arrasou a Itália entre 1922 e 1943.
Por mais que seja inegável o caráter populista e autoritário do bolsonarismo, ainda há um oceano a separá-lo de Mussolini em termos de brutalidade política. Aqui não se sodomiza deputados esquerdistas com cassetete e nem se executa sindicalistas a pauladas no meio da rua, em expedições punitivas pela madrugada. Detalhe: essas duas barbaridades, relatadas no livro, aconteceram antes da ascensão de Mussolini ao poder, em tempos em que o fascismo apenas ganhava forças.
Ressaltar as diferenças não significa outorgar ao bolsonarismo um ISO 9000 de aceitação da democracia. A extrema-direita não é uma força comprometida com a democracia nem no Brasil, nem em nenhum lugar do mundo, frise-se. Como a extrema-esquerda também não é. A ação de um bolsonarista ao retirar as cruzes que simbolizam as mortes por covid em um protesto nas areias de Copacabana são sugestivas neste sentido.
O que perturba é a semelhança entre a operação política dos dois. O ditador italiano e o presidente brasileiro chegaram ao poder dentro de uma vaga de descrédito das instâncias partidárias e das instituições, capitaneando movimentos populares tão apaixonados quanto inorgânicos. Bolsonaro, assim como Mussolini, não representa um sonho coletivo, mas o sonho de muitos, para usar uma expressão de Ricardo Sidicaro, um especialista na variante argentina de populismo autoritário, derivada de Peron.
Ao chegar ao poder, em poucos meses Mussolini se viu em uma vertente de isolamento político. O escândalo decorrente do seu próprio envolvimento no assassinato de um adversário político levou o fascismo a passar por um derretimento em 1924. Primeiro Mussolini perde o apoio dos grandes motores da mídia, os jornais “Corriere della Sera” e “La Stampa”.
Depois perde as ruas: as manifestações a seu favor tornam-se cada vez menores e cada vez mais radicalizadas. “O Partido Nacional Fascista está fechado em si mesmo como uma fortaleza sitiada”, escreve Scurati. Mussolini recorre ao refúgio do patriotismo, fazendo com que o fascismo se aproprie dos símbolos nacionais, como a bandeira tricolor e a lembrança dos mortos na Primeira Guerra Mundial, mas aí “o Parlamento, até então cúmplice, também começa a repudiar o fascismo”. Segundo Scurati, nos corredores da Câmara “fala-se de acordos entre os principais líderes liberais para minar a autoridade de Mussolini”.
Derrotas no Congresso começam a acontecer. “A cada novo voto, o governo perde apoio”. Antigos aliados principiam a pedir a renúncia do Duce. “A maioria desmorona, o poder de Mussolini mostra sinais de instabilidade”.
O fascismo parecia em queda livre, quando em 30 de novembro “todas as forças antifascistas se reúnem em Milão”, em uma manifestação que há muito tempo não se via.
Em editorial, o jornal “La Stampa” comentou: “ o governo tem uma única preocupação: não acabar. Um único medo: as sanções da Justiça. Uma sensação de incerteza e inquietude se difunde pelo país sem possibilidade de ser interrompida e nem remediada”.
É nesse instante que entra em cena a variante do “Centrão” na política italiana dos anos 20. Na época, se chamava “Pântano” o bloco de deputados que nem estavam na terra firme, nem na profundeza das águas.
Eram os 44 deputados da chamada direita moderada, “os que estão sempre no meio entre duas conflitantes formações de alucinados”.
Tudo o que o bloco queria, conforme descreveu Scurati, era encontrar uma forma de minar a autoridade do governo, de modo a forçar Mussolini a romper com seus radicais e adotá-los como base política.
Começam as negociações e Mussolini propõe uma reforma eleitoral, trocando o voto em lista pelo majoritário, algo que, em tese, poderia beneficiar os caciques do bloco.
“ A direita liberal, até ontem pronta a alijá-lo, se reaproxima atraída pela perspectiva de reeleição. Ameaçados pelo risco de não se reelegerem, os fascistas moderados, até ontem seduzidos pela corrente de oposição, correm para se realinhar. O pântano, assim, se fecha sobre o próprio lodo. A única coisa que importa para os políticos de carreira é a reeleição. Mesmo que o mundo desabasse, eles não levantariam um dedo para ajudar ninguém”, lamenta Scurati.
Sentindo-se fortalecido, em 3 de janeiro de 1925 Mussolini vai ao parlamento e paga pra ver. Ele pergunta: “o artigo 47 do Estatuto diz que a Câmara tem o direito de acusar os ministro do rei e de conduzi-los à Alta Corte. Pergunto se alguém nesta Câmara ou fora dela há quem queira se valer do artigo 47?”.
O silêncio é a resposta. Mussolini planta as mãos no quadril, estica o pescoço pra cima, projeta o queixo quadrado a seus interlocutores e se torna novamente o dono do jogo. Com a cooptação do Pântano, Mussolini estava blindado.
Aqui no Brasil, Bolsonaro vai exorcizando o fantasma do impeachment com a recriação do Ministério das Comunicações, a ser entregue para o deputado Fábio Faria, a possível ressurreição do Ministério da Segurança, que pode ir para o mesmo bloco, e o embarque no projeto de poder do líder do PP, Arthur Lira, mais forte nome para suceder Rodrigo Maia na presidência da Câmara.
A pandemia e a crise econômica desgastam Bolsonaro, que mesmo antes das desgraças de 2020 já não contava com mais do que um terço, na melhor das hipóteses para ele, de apoio no eleitorado. É a hora do Centrão fazer seu preço, como o Pântano fez na Itália. Na hora mais escura, não são os malucos da internet de hoje ou das camisas negras do passado que salvam o líder.
*César Felício é editor de Política
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