- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O povo brasileiro votou para ter um governante e elegeu um usurpador que governa em nome do que acha, e não do prescrito
Faz tempo que um poder invisível tem aqui se ocultado nos bastidores do poder formal e aparente. Esse fantasma sobrevive e manda em todos nós. Está de volta. A cara do poderoso é apenas a máscara do invisível.
Temos um governante que faz e diz, diariamente, coisas fora do marco do que possa ser reconhecido e interpretado como próprio da democracia, da representação política e do decoro da governança, que foi o motivo da eleição de 2018. O povo votou para ter um governante e elegeu um usurpador. Governa em nome do que acha, e não do prescrito.
Não há, pois, como não suspeitar de que o país está sob o jugo de um governo invisível. Porque, com a mentalidade diariamente divergente do governante em relação ao constitucionalmente previsto e ao politicamente esperado, o país está sendo governado por alguém que não é o eleito, nem sabemos quem é.
Já aconteceu antes: o presidente Garrastazu Médici (1905-1985), por suas insuficiências, foi escolhido para não governar. Governava o chamado “sistema”, o governo invisível da linha-dura do regime militar. Gente que queria mandar, mas não tinha coragem de assumir os malfeitos do regime. Até porque era mando para executar o inconfessável da repressão, da tortura e dos desaparecimentos políticos.
Gente que sabia ou, ao menos, intuía que lá adiante, quando o país retornasse à normalidade democrática, teria que enfrentar a acusação de suas vítimas e da própria sociedade restituída ao seu legítimo direito de governar-se às claras.
Num governo de improvisações, com ministros notoriamente escolhidos a dedo, por seu despreparo, para se equivocarem, mesmo os altos funcionários devidamente preparados acabam sendo contaminados pelos efeitos corrosivos das decisões e das ações dos que estão muito aquém do que a função pública requer. Estamos vendo isso em relação à questão ambiental e à da educação.
O que indica que o atual presidente fala e age em nome de uma causa que é a de alguém que não vemos e em quem não nos reconhecemos, alguém que pressupõe que o povo precisa ser enganado para ser governado. No fundo foi o que disse um dos mais despistados ministros na reunião de 22 de abril.
Várias das transgressivas decisões do governo deveriam ser submetidas a consulta popular para valer. O governo, sem mandato para tanto, tenta modificar o regime político definido na Constituição.
Contrariamente ao que o comportamento do governante revela no que faz e diz, a eleição de 2018 não foi consulta para mudar o regime. Nem para fazer o desmonte do Estado, a que se referiu o general Hamilton Mourão em sua campanha eleitoral.
Desmonte é o oposto de reforma. É usurpação de direitos sociais e políticos do povo. O “regime” bolsonarista desmonta os direitos sociais, um a um; desmonta as conquistas civilizadoras, a duras e demoradas penas conseguidas; desmonta a instituição da Presidência da República ao transformá-la num condomínio do ódio para dividir o povo brasileiro e torná-lo indefeso e manipulável. Impõe como doutrina de Estado o reles achismo de quem governa.
Desmonta a própria função cívica e propriamente militar das Forças Armadas, em particular as do Exército, ao tratá-lo como se devesse estar a serviço de uma causa que não é, propriamente, a causa da nação.
Mobiliza seus seguidores e apoiadores para se armarem e facilita o armamento contra o pressuposto legal de que as Forças Armadas devem ter o monopólio da violência a serviço da ordem e da Constituição. Não a serviço da desordem no silêncio cúmplice com as modalidades de terrorismo que vão se evidenciando em ações de grupos direitistas.
Condecora em nome da Marinha, sem a justificativa apropriada e necessária, gente que, provavelmente, não passaria no peneiramento da concepção de pátria do almirante Tamandaré, humanista, abolicionista e herói da pátria.
Interpreta o artigo 142 da Constituição contra a Constituição para supostamente delegar às Forças Armadas a função de poder moderador, que não têm, senão por meio de golpe, quando moderador é o STF. Os outros 249 artigos são os que dão sentido ao artigo 142.
Se o presidente está ocupado todo o tempo com as performances e exibições de um presidencialismo ora náutico, ora equestre, reduzido a mandonismo, quem está governando o Brasil? Quem é o ponto da comédia política brasileira que sopra ao ouvido dos usurpadores, além dos palavrões transgressivos e antibrasileiros, as diretrizes do desmonte e da liquidação da pátria? O enredo da incerteza e do obscurantismo, da doença e da morte?
O fantasma de agora, à luz do que sugerem as evidências inesperadas e reveladoras porque anômalas, do desgoverno, já era anunciado em outras aparições. E, no engano de muitos, não percebemos.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "O Cativeiro da Terra" (Contexto).
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