quarta-feira, 8 de julho de 2020

Monica De Bolle* - Preguiça mental

- O Estado de S.Paulo

De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência

Reforma, reforma, reforma, privatização. Repitam comigo: reforma, reforma, reforma, privatização. Agora outro. Teto, teto, teto, ou inflação. De novo: teto, teto, teto, ou inflação. Mais um: a dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. A dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. Resume-se a isso o debate econômico no Brasil. Não, esqueci desse: a queda de oferta é maior do que a queda da demanda, logo, vai dar inflação. Em algum momento vai dar inflação. Aguardem aí que vai dar inflação. A palavra inflação fica ecoando no ouvido como uma taça tibetana, aquelas usadas para meditar, mais apropriadamente conhecidas em inglês como “singing bowls”. O som que emana delas é o ruído da preguiça mental, aquela névoa densa que caracteriza o debate econômico brasileiro.

Cresceu a produção industrial? É a retomada, a hora das reformas, o momento oportuno para privatizar, o tempo do teto, o desfile dos ajustes para conter a dívida. O problema? O problema é que passam-se os anos, passam-se as décadas, e as conveniências continuam as mesmas, pois impera uma preguiça mental. De nada vale um aumento pontual da produção industrial se o ponto de partida era péssimo. Trata-se daquela velha história: se algo que valia 100 caiu 50% de valor, para que volte a valer o que valia antes o aumento precisa ser de 100% -- as condições iniciais importam. De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência do que quer que seja. Ah, mas a economia reabriu? Falemos sobre a reabertura da economia. Mas tratemos de não ignorar o contexto.

Temos uma epidemia que muitos ainda não entenderam. Como o vírus ataca os pulmões, prevalece a impressão de que a covid é uma doença do trato respiratório. Contudo, o que já se vê nos relatos clínicos e em estudos científicos é outra caracterização do mal que aflige o planeta, e o Brasil em particular. O vírus entra no corpo pelas vias respiratórias superiores, migra para o pulmão, mas também para a corrente sanguínea. Ele tem a capacidade de se ligar ao endotélio, a parede das veias capilares. A rede das veias capilares é a mais extensa e complexa do sistema vascular. Uma vez acoplado ao endotélio, o vírus migra com o fluxo sanguíneo para todos os tecidos e órgãos do corpo. Essa doença que chamamos de covid é, por isso, sistêmica: uma vez no sistema circulatório, o vírus trafega por toda parte. Isso explica por que os sintomas são tão variados. Também explica por que essa doença é tão traiçoeira.

Uma economia em que circula um vírus sistêmico sem qualquer controle é uma economia destroçada, ainda que os efeitos demorem a aparecer. Pois não basta que estejam abertos os estabelecimentos, as fábricas, os bares, os restaurantes. Se a população estiver desprotegida, ou se parte dela for negligente, muitas pessoas adoecerão. Quanto mais doentes, ainda que muitos apresentem sintomas leves, mais sofre a economia. Digo isso levando em conta o que sabemos. Se levarmos em conta o que não sabemos, caberá perguntar: já que o vírus é sistêmico, qual a chance de uma sequela permanente? Qual a chance de invalidez?

Quantas pessoas sofrerão de fibrose pulmonar, problemas de coagulação sanguínea, problemas neurológicos? Quantas terão trombose, ou acidentes cardiovasculares? Enfim, quantas pessoas ficarão permanentemente, ou por um período muito longo, dependentes do sistema de saúde? Quantas dessas pessoas terão o SUS como única via? Nessas circunstâncias, como vamos dar os recursos necessários ao SUS? E se algumas pessoas não puderem voltar ao trabalho devido às sequelas da covid? Como haverão de se sustentar? Qual pode vir a ser o impacto de uma epidemia descontrolada na força de trabalho?

Essa lista de perguntas é apenas uma pequena amostra de tudo aquilo que nossos governantes, economistas, gestores de política pública deveriam estar se perguntando e para o que deveriam tentar mapear saídas. Sim, mapear. Respondê-las com qualquer grau de certeza é impossível. Contudo, em vez de perguntar e pensar, muitos de nossos pensadores e executores se entregam à preguiça mental disfarçada por um repeteco constante de mesmices. Se pudesse acrescentar um efeito colateral do vírus, seria esse de ele ter sido capaz de cruzar a barreira hematoencefálica provocando o adormecimento de muitos neurônios por aí.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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