Movimento
não se distinguia pelas festas mais divertidas, mas porque seu 'Abaixo a
ditadura' tinha validade universal
“Libelu
– Abaixo a Ditadura”, de Diógenes Muniz, venceu
o festival É Tudo Verdade. Eduardo Escorel, numa crítica aguda, disse que o
documentário não é sobre Liberdade e Luta ou sobre a ditadura militar, mas
sobre um grupo de sexagenários que revisitam, melancolicamente, sua juventude.
Meia verdade: são dois filmes em um.
Há,
no filme explícito, uma história dos anos quentes de 1975-79, cujo apogeu foi
1977, quando o movimento estudantil golpeou duramente o regime militar,
preparando o tiro fatal desferido pelas greves
do ABC lideradas por Lula. Esse documentário ficará, como narrativa
envolvente de um período tão decisivo quanto pouco estudado.
Já
o filme oculto, cujo argumento foi desvendado por Escorel, perecerá logo,
vitimado pelo vírus da irrelevância. Contudo, circunstancialmente, ele ensina
algo sobre a atual esquerda brasileira.
“A minha é uma geração derrotada, pois não
conseguimos mudar o Brasil”, lamenta Eugênio
Bucci, um dos “libelus” entrevistados. A réplica lúcida aparece na
sequência, pela voz de Josimar Melo:
“Conquistamos a democracia”. O tom geral melancólico deriva da pouca
importância atribuída a essa conquista por vários dos ex-militantes.
Também
dei meu depoimento, concentrando-me no roteiro do filme explícito. Porém,
indagado, não escondi que minha saída da Libelu (ou
melhor, da organização trotskista que a impulsionava) refletiu uma ruptura
intelectual com o marxismo —isto é, com a ideia de que um partido singular
possui o monopólio da verdade histórica. Nos depoimentos, diversos dos antigos
“libelus” definiram-se como, até hoje, “de esquerda” —e um ou outro aplicou-me
o rótulo de “direitista”.
É
um tanto engraçado —e só interessa como sintoma. Mensurados sob parâmetros
europeus, meus valores me situariam na centro-esquerda. Por isso, a rotulação
ajuda, mesmo que subsidiariamente, a decifrar a fragilidade ideológica da oposição
de esquerda a Bolsonaro.
Muitos
dos “libelus” que falaram à câmera tornaram-se lulistas, inclusive os ainda
militantes da corrente trotskista do PT. Do ponto de vista dos lulistas, só
existem “esquerda” (eles mesmos e seus “companheiros de viagem”) e “direita”
(todos os demais). A extrema direita raciocina do mesmo modo, só que pelo
avesso: se você não é bolsonarista, então é “comunista”. A linguagem binária
compartilhada tem a finalidade de identificar o inimigo, convertendo a política
em guerra.
“Abaixo a ditadura” —a palavra de ordem
relançada em 1977 pela Liberdade e Luta convenceu-me a entrar na organização
trotskista. Mas não só ela. Junto, atraiu-me a repulsa dos trotskistas da época
a qualquer ditadura, de direita ou esquerda. Pedíamos, por exemplo, a
libertação de dissidentes presos por regimes comunistas atrás da Cortina de
Ferro, na Polônia e na Tchecoslováquia, uma informação que não aparece no
documentário. Afastei-me quando, após as greves operárias, a “nossa”
ditadura cambaleava. No fundo, suspeito que muitos de nós militávamos,
de fato, pela democracia, não pela miragem da revolução socialista.
Os
ex-“libelus” repaginados como lulistas regrediram à posição das correntes de
inspiração castrista que concorriam pela liderança do movimento estudantil daqueles
tempos. Hoje, denunciam o autoritarismo “de direita”, mas calam-se —ou, pior,
até aplaudem— o autoritarismo “de esquerda”. Sua indignação diante dos
saudosistas do AI-5 contrasta com sua simpatia pelos regimes cubano e
venezuelano. A melancolia que invade o filme reflete essa ruptura crucial com
as convicções verdadeiramente fundamentais dos anos de juventude.
Liberdade
e Luta não se distinguia, no movimento estudantil, por promover as festas mais
divertidas, mas porque seu “Abaixo a ditadura” tinha validade universal. Nisso,
ela estava coberta de razão, tanto no plano político como na esfera moral. Viva
os “libelus”.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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