Na
encíclica ‘Fratelli Tutti’ pontífice convida a repensar o mundo de forma mais
aberta
Fratelli Tutti, ou, em português, Todos Sois Irmãos, é o título da nova encíclica do papa Francisco, publicada no último dia 4 de outubro. Trata-se de um documento de ensino social da Igreja Católica, mediante o qual o papa reflete sobre algumas questões sociais atuais, que afligem a humanidade. E o faz partindo do coração do Evangelho, onde o amor a Deus e o amor ao próximo se encontram inseparavelmente vinculados.
É
convicção cristã que a humanidade, apesar de suas diferenças, é uma grande
família de irmãos, que tem Deus por pai e Jesus Cristo como irmão e mestre de
todos. Essa é, por assim dizer, uma cláusula pétrea do ensinamento cristão, que
também fundamenta todo discurso social, econômico e político da Igreja.
Francisco
parte das situações dramáticas atuais vividas pela humanidade, destacando a
fragmentação da consciência solidária e a afirmação sempre maior de uma cultura
e de um estilo de vida individualistas. Aponta para a falta de projetos
consistentes para alcançar o bem comum local e universal; refere-se à exclusão
de amplos grupos de indesejados e descartados; lamenta que os direitos humanos
sejam cada vez menos universais e voltados, mais e mais, para a afirmação de
interesses particularistas; fala do desvirtuamento dos sonhos da globalização,
do progresso e do desenvolvimento, bem como da dignidade negada a tantos seres
humanos, da comunicação “sem sabedoria, agressiva e despudorada” e da perda da
esperança. E não deixa de se referir à crise ecológica e ambiental, que ameaça
a destruição de nossa casa comum e o futuro da vida.
Que
fazer diante disso? O papa Francisco convida a repensar o mundo de forma mais
aberta, apontando para os valores imprescindíveis do amor e da fraternidade.
Não se pode continuar a pensar e planejar o mundo para privilegiados, onde são
deixados à margem tantos irmãos, que têm a mesma dignidade de todos. Nem basta
continuar a afirmar teoricamente os princípios de liberdade, fraternidade e
igualdade: se esses belos princípios estiverem orientados por uma prática
individualista, acabarão produzindo o contrário do que, teoricamente,
significam. Deveriam estar animados pela força da solidariedade e a própria
afirmação dos direitos, para não ser desvirtuada, precisa dar prioridade aos
direitos universais, sem fronteiras nem discriminação.
Num
capítulo mais propositivo, o papa trata da edificação de um mundo menos fechado
e da necessidade de “corações abertos para o mundo inteiro”. A humanidade criou
fronteiras de todo tipo, cavou trincheiras e levantou muros com a preocupação
compreensível de se proteger contra a invasão indevida do espaço da própria
liberdade e contra toda forma de agressão. Mas quando essa preocupação é
motivada pela rejeição ao outro, pelo resguardo dos próprios privilégios e pela
pouca vontade de partilhar, o mundo torna-se cada vez menos fraterno e mais
agressivo. O pontífice fala de abertura ao outro, da gratuidade e do
intercâmbio de dons, em que o local e o universal não precisam estar em polos
opostos, mas podem ser reciprocamente enriquecedores. Quem se fecha ao outro
empobrece e estreita os próprios horizontes.
Inevitável
se torna a reflexão sobre o panorama político atual e o papa não poupa críticas
aos populismos e liberalismos, que estão na base de muitos dos graves problemas
atuais da convivência local e internacional. E acena para a necessidade de um
“poder internacional” capaz de moderar adequadamente as questões e os conflitos
políticos da comunidade humana inteira. É uma reflexão difícil e a simples
abordagem desse tema provoca arrepios em certos ambientes do pensamento
contemporâneo, ciosos defensores de poderes locais absolutos. Francisco volta
ao tema da caridade política, um tema recorrente no ensino social da Igreja: a
verdadeira política requer altruísmo e genuíno amor ao próximo. Não se trata de
idealismo utópico, pois faltam testemunhas de verdadeira caridade social e
política.
Francisco
também foi buscar na filosofia grega antiga dois elementos para uma renovada
convivência social e política: a amizade social e o diálogo. A amizade social
leva a respeitar e tratar bem cada cidadão, valorizando a sua contribuição para
a edificação do convívio social. O diálogo é a arte da superação de rupturas e
distanciamentos, para tecer entendimentos e aproximação.
Isso
pode soar estranho para quem aposta na dialética do conflito, ou no liberalismo
absoluto para a edificação das relações sociais.
No
entanto, os princípios da luta e do liberalismo absoluto já deram mostras do
que são capazes de produzir: o triunfo do mais forte sobre o fraco, o império
da lei da selva, violência, dor e sangue. Por que não apostar no diálogo, na
busca do consenso orientado pela verdade e na amizade social, capazes de
suscitar nova cultura e nova política, impregnadas de altruísmo, amabilidade e
fraternidade? Por que não acreditar numa verdadeira revolução cultural, para
tornar a convivência mais fraterna, verdadeiramente humana?
*Cardeal-Arcebispo de São Paulo
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