sábado, 10 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editorias

Um avanço notável – Opinião | Revista Veja

Goste-se ou não das alianças no Congresso ou de sua indicação para o Supremo, o fato é que Bolsonaro se livrou de uma postura que causava instabilidade

Ao contrário dos Estados Unidos, que têm eleições presidenciais ininterruptas desde 1789, a democracia brasileira sofreu dois longos períodos de descontinuidade desde a proclamação da República, em 1889. Na última oportunidade, durante a ditadura militar, foram 29 anos sem que os eleitores pudessem escolher o presidente. A retomada aconteceu em 1989, com a vitória de Fernando Collor de Mello — de lá para cá, houve uma sequência de pleitos sem sobressaltos. Embora tenha demonstrado vigor, ancorado em instituições cada vez mais fortes, o sistema democrático brasileiro, convém lembrar, é jovem — e, portanto, sujeito a retrocessos. Daí a imensa preocupação desde a posse de Jair Bolsonaro. Dono de uma carreira singular, o presidente construiu sua trajetória política numa espécie de bolha, com pouca capacidade de negociação e um discurso voltado para nichos muito específicos, principalmente os militares. Nessa jornada, por diversas vezes, demonstrou desprezo pela democracia e pelas liberdades individuais.

Uma vez no Palácio do Planalto, o presidente infelizmente não surpreendeu positivamente. Por meio de postagens desastradas no Twitter e comentários pouco cautelosos, entrou em conflito com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal com preocupante frequência. Até muito recentemente, fazia do confronto permanente a sua estratégia de negociação, um processo que poderia levar o país a um ponto de ruptura entre as instituições. Para piorar, incentivava uma claque de desajustados que organizavam manifestações pedindo a volta da ditadura e o fechamento do Parlamento e do STF. Numa dessas ocasiões, um desses desvairados soltou fogos de artifício em frente ao tribunal. Uma cena lamentável que, ao lado de outras aberrações, virava rotina em Brasília. Em todos esses momentos, VEJA foi rigorosa, ao registrar tais barbaridades e atropelos em capas, longas reportagens e críticas veementes na Carta ao Leitor. Afinal, a defesa intransigente da democracia e das instituições é parte inegociável da nossa missão e de nossos valores.

Por essa razão, precisamos ser justos agora e saudar de forma efusiva a transformação pela qual o presidente vem passando nos últimos três meses. Goste-se ou não das alianças no Congresso ou de sua indicação para o Supremo, o fato é que Bolsonaro saiu da postura anterior, que causava instabilidade, para o exercício natural da negociação política. Antes, ele fustigava o STF e desprezava a formação de uma maioria no Parlamento. Havia no ar um medo de golpe. Hoje, abre canais de entendimento com ministros do tribunal e senta-se à mesa para negociar com congressistas. Como mostra a reportagem que começa na página 30, sua articulação política foi entregue a profissionais, como o ministro Fábio Faria, os líderes do governo Ricardo Barros e Eduardo Gomes, e o deputado Arthur Lira. Ainda que entre os motivos para tal mudança possa estar o temor de sofrer um impeachment, trata-se de uma evolução bem-vinda e oportuna do presidente. Há muitos desafios pela frente no Brasil — da economia às causas sociais. Saber, ao menos, que a democracia não sofre riscos, que os poderes começam a trabalhar em harmonia, é um alívio e, diante do passado recente, um baita avanço.

*Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708

A lei é para todos – Opinião | O Estado de S. Paulo

Ensinamento de Celso de Mello, em sua última sessão do Supremo, deve servir de reflexão para todo o Poder Judiciário, em suas diversas instâncias

Na última sessão como integrante do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello reiterou o entendimento de que as regras processuais penais devem ser aplicadas integralmente ao presidente da República, sem nenhum tipo de privilégio. O caso julgado refere-se ao recurso do presidente Jair Bolsonaro contra a decisão que negou a possibilidade de prestar depoimento por escrito no Inquérito 4.831, que investiga suposta tentativa de interferência política na Polícia Federal. No seu voto, em que negou provimento ao recurso do presidente, o decano do STF lembrou aspectos fundamentais da República.

“A ideia de República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental: o do primado da igualdade de todos perante as leis do Estado. (...) Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado”, disse Celso de Mello. Para o decano, a lei processual é clara. Na condição de testemunhas, as autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário podem ser ouvidas em local, dia e hora previamente ajustados entre elas e o juiz. No entanto, não existe essa prerrogativa no Código de Processo Penal, quando as autoridades estão na condição de investigadas. No caso, o inquérito investiga a conduta de Jair Bolsonaro.

“O postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações, impedindo que se estabeleçam tratamentos seletivos em favor de determinadas pessoas e obstando que se imponham restrições gravosas em detrimento de outras, em razão de sua condição social, de nascimento, de parentesco, de gênero, de amizade, de origem étnica, de orientação sexual ou de posição estamental, eis que nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República, sob pena de transgredir-se o valor fundamental que informa a própria configuração da ideia de República, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade”, disse o decano do STF.

O ministro Celso de Mello também lembrou que “a estrita observância da forma processual representa garantia plena de liberdade e de respeito aos direitos e prerrogativas que o ordenamento positivo confere a qualquer pessoa sob persecução penal”. Ou seja, a aplicação da lei no caso concreto, sem inventar uma prerrogativa inexistente na lei, não é um ato de perseguição contra o presidente da República, tampouco representa uma tentativa de restringir seus direitos e garantias como investigado.

“A tutela da liberdade, nesse contexto, representa insuperável limitação constitucional ao poder persecutório do Estado, mesmo porque – ninguém o ignora – o processo penal qualifica-se como instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais daquele que é submetido, por iniciativa do Estado, a atos de persecução penal, cuja prática somente se legitima dentro de um círculo intransponível e predeterminado pelas restrições fixadas pela própria Constituição da República”, lembrou o ministro Celso de Mello.

Em seu voto, o decano do STF reconheceu que, em anos recentes, houve decisões monocráticas da Justiça autorizando que autoridades, mesmo na condição de investigadas, prestassem depoimento por escrito. A Procuradoria-Geral da República (PGR) alegou que, em razão do princípio da igualdade, o mesmo tratamento deveria ser concedido ao presidente Jair Bolsonaro.

O ministro Celso de Mello lembrou uma realidade fundamental. “O postulado da isonomia visa justamente evitar a concessão de privilégios injustificáveis – e inexistentes em lei – para determinado grupo de pessoas ou para certas autoridades públicas, ainda que se trate do Chefe de Estado”, disse.

Esse ensinamento do ministro Celso de Mello, em sua última sessão do Supremo, deve servir de reflexão para todo o Poder Judiciário, em suas diversas instâncias. Frequentemente, o princípio da igualdade é aplicado de forma distorcida. A indevida concessão de um privilégio num caso torna-se pretexto para repetir e ampliar o erro. O princípio da igualdade vem assegurar direitos iguais, e não ampliar privilégios. O critério é sempre a lei.

Cavalo de pau – Opinião | O Estado de S. Paulo

Na ânsia do presidente de se manter no poder, não há vaca sagrada que não possa ser sacrificada

O presidente Jair Bolsonaro diz que é fake news. O ministro da Economia, Paulo Guedes, jura que é “conversa fiada”. Mas o fato é que não se fala de outra coisa em Brasília: o Centrão quer que Bolsonaro recrie alguns Ministérios, inclusive na área econômica, para acomodar aliados e reforçar a base governista. 

O movimento não surpreende ninguém. O Centrão é formado por partidos cuja vocação é o governismo, qualquer que seja a orientação ideológica e programática do governo de turno. O único interesse dessas agremiações é ter acesso a verbas e nomeações que lhes assegurem poder, recursos e força eleitoral. Em troca, votam com o Palácio do Planalto – o velho “toma lá dá cá”.

Não é preciso um grande esforço de memória para lembrar que Bolsonaro fez toda a sua campanha eleitoral prometendo reduzir o número de Ministérios para no máximo 15 e escolher ministros segundo critérios técnicos, sem favorecer este ou aquele partido aliado. De fato, Bolsonaro vinha cumprindo parcialmente essa promessa: se o número de Ministérios está em 23, bem longe dos 15 anunciados, o preenchimento das vagas não seguiu o figurino fisiológico a que o País se acostumou.

Mas nada como um dia após o outro – com as muitas vicissitudes do poder entre eles. Depois de sentir na pele a ameaça, real ou não, de se ver prematuramente destituído da Presidência e de ter a Justiça nos seus calcanhares e no de seus filhos, deu um cavalo de pau no seu governo e no seu comportamento.

Trocou as bravatas diárias contra os demais Poderes e contra a democracia pelo silêncio. Ao mesmo tempo, livrou-se aos poucos dos áulicos amadores e acercou-se de operadores profissionais. O primeiro indício disso já havia se revelado em junho, quando Bolsonaro recriou o Ministério das Comunicações para entregá-lo a um indicado pelo Centrão. Foi o começo do fim do tonitruante Bolsonaro que venceu a eleição – e que prometia enterrar a velha política – e sua reconversão, discreta, mas irresistível, ao varejo oportunista que ele, afinal, conhece há décadas.

O “novo” Bolsonaro de “novo”, portanto, não tem nada. Na ânsia do presidente de se manter no poder e de se proteger da Justiça, não há vaca sagrada que não possa ser sacrificada – o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro que o diga. 

Assim, não será surpresa se, de acordo com a necessidade, o Ministério “enxuto” e “técnico” de Bolsonaro alcance em algum momento no futuro as inacreditáveis 39 pastas de Dilma Rousseff – que as criava na exata proporção de seu galopante enfraquecimento político. No desespero de se manter no poder, Dilma e os operadores petistas lotearam praticamente todo o governo – o ex-presidente Lula da Silva chegou a transformar um quarto de hotel em Brasília em um escritório para negociar cargos com políticos e partidos a poucos dias da votação do impeachment. Como se sabe, debalde.

O fato é que o faro do Centrão para presidentes encrencados continua apurado. E a aposta, desta vez, é alta: consta que o alvo desses partidos agora é a seara do ministro Paulo Guedes. Querem a recriação dos Ministérios da Indústria e Comércio e do Trabalho e Previdência, que haviam sido absorvidos pelo “superministério” da Economia.

O avanço do Centrão sobre a Economia, se consumado, concluirá o passamento do “superministro” Paulo Guedes, reduzido cada vez mais à categoria de mero consultor do presidente para assuntos econômicos. Tudo isso no momento em que o presidente está sendo pressionado pelas terríveis circunstâncias – a pandemia de covid-19 e a perda de renda de milhões de brasileiros – a tomar decisões que, se mal concebidas, podem ameaçar o já bastante frágil estado das contas nacionais. 

Na prática, a política econômica corre o sério risco de se converter em instrumento do populismo do Centrão e de seu novo melhor amigo, o presidente Bolsonaro, cujas juras de responsabilidade fiscal são, na melhor hipótese, duvidosas. Esse desfecho pode ser ótimo para as pretensões eleitorais imediatas de todos eles, mas sem dúvida será péssimo para o País.

Drible na lei – Opinião | Folha de S. Paulo

Empresas desafiam Justiça ao oferecer disparo de mensagens e cadastro de eleitor

Foi modesto o progresso feito pelo Brasil desde o surgimento das primeiras evidências de que novas tecnologias passaram a ser usadas para espalhar desinformação e envenenar o debate público no país.

A Justiça Eleitoral parece ter adquirido maior entendimento do problema, e uma resolução aprovada no fim do ano passado proibiu o uso de aplicativos de mensagens para distribuir propaganda política de forma massiva.

Mas permanece constrangedor o fracasso das autoridades em levar adiante as investigações sobre os empresários que financiaram ilegalmente uma operação desse tipo na reta final da disputa presidencial de 2018, com o fim de beneficiar a campanha de Jair Bolsonaro, como a Folha revelou na época.

O WhatsApp, serviço de mensagens que se tornou um instrumento perigoso nas mãos dos que promovem campanhas de desinformação, adotou regras mais estritas e tomou diversas medidas para inibir o mau uso de sua plataforma.

A despeito desses esforços, entretanto, surgem a todo momento novos indícios de que políticos e empresários mal-intencionados continuam encontrando brechas para disseminar falsidades e atingir eleitores desprevenidos por meio de aplicativos e redes sociais.

Como este jornal revelou na última segunda-feira (5), pelo menos cinco empresas têm oferecido abertamente no mercado serviços de disparo em massa de mensagens políticas, garantindo a seus clientes meios de contornar as barreiras criadas recentemente.

Vendem-se também cadastros com informações pessoais de eleitores, extraídas das plataformas de modo aparentemente furtivo, sem que os usuários desses serviços tivessem autorizado o compartilhamento de seus dados para esse fim.

Empresas como o Facebook, que é dono do WhatsApp, mostram-se dispostas a cooperar com a fiscalização e dizem ter aperfeiçoado métodos de detecção de atividades suspeitas e agido contra milhares de infratores. Mas suas ações têm se revelado insuficientes para lidar com o problema, além de pouco transparentes para o público.

Dadas as limitações impostas pela pandemia do coronavírus à campanha deste ano, candidatos a prefeito e vereador têm procurado novas maneiras de se comunicar com o eleitorado, e muitos decerto não resistirão à tentação de desafiar a lei para alcançá-los.

Não se ignoram as dificuldades enfrentadas em toda parte para conter a disseminação de falsidades na internet. Mas cabe à Justiça Eleitoral buscar os meios de superá-las e assim cumprir sua missão de zelar para que a competição se dê em ambiente propício ao debate de ideias. A inércia custará caro, e o prejuízo ficará com o eleitor.

Organizar a pauta – Opinião | Folha de S. Paulo

Maia acerta em priorizar a PEC Emergencial; Executivo deve abraçar racionalidade

Selada em jantar nesta semana, vem em boa hora a trégua entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Após meses de conflitos, surge oportunidade para organizar a pauta econômica mais essencial.

Há urgência na discussão do Orçamento de 2021. A busca por fontes de financiamento para a ampliação de transferências de renda às famílias pobres se transformou em enorme confusão, agravada pelo flerte do governo com novas pedaladas fiscais.

O problema está no presidente Jair Bolsonaro, avesso a decisões difíceis que afrontem qualquer grupo de interesse no período eleitoral. Mas está também em Guedes e sua equipe, que até agora se mostraram incapazes de oferecer opções factíveis que não desrespeitem o limite para os gastos federais inscrito na Constituição.

O respeito ao teto é essencial no contexto atual em que a dívida pública cresce sem controle. Soluções populistas não funcionarão, pois levarão a uma crise orçamentária e ao descontrole econômico.

Um bom começo seria dimensionar bem o desejado programa Renda Cidadã, especificando o público que se quer atender e o impacto potencial na redução da pobreza —para então debater o custo e de onde virá o dinheiro.

Bolsonaro já disse que não quer tratar do assunto antes das eleições municipais, o que pode ser boa notícia se o tempo for usado de forma construtiva e competente na construção de uma solução.

Na prática, o desafio é abrir espaço no Orçamento, substituindo outras despesas sem criar malabarismos. Nesse sentido, o presidente da Câmara tem a visão correta.

A melhor opção para compatibilizar a ampliação do gasto social e o ajuste das contas públicas é avançar com a chamada PEC Emergencial —proposta que ajudará a conter despesas obrigatórias, sobretudo com a folha de pagamento dos servidores, incluindo a permissão para corte de jornada e salários.

Como seu próprio nome deixa claro, o texto não constitui uma resposta para o longo prazo, que dependerá de medidas adicionais, como a reforma administrativa. Entretanto é necessário começar por ela, como disse Maia.

Outras pautas, como a reforma tributária, ficarão para o ano que vem. Até lá, Guedes faria bem em abandonar ideias como a recriação da CPMF e se concentrar no que é mais urgente e consensual.

O exemplo de Celso de Mello para o STF – Opinião | O Globo

Não só seu substituto, mas todo o tribunal deveria se inspirar no legado do decano que se aposenta

Em seu voto de despedida do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello reafirmou que o presidente Jair Bolsonaro deve prestar depoimento em pessoa no inquérito em que é acusado de tentar intervir na Polícia Federal. Na última sessão plenária de que participou, na quinta-feira, o decano da Corte usou um argumento que resume sua trajetória de três décadas no STF: “Ninguém, nem mesmo o chefe do Poder Executivo da União, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

Celso fará falta. Indicado ao Supremo em 1987 pelo presidente José Sarney, ele se retira da Corte em tempos de tensão institucional. Pela primeira vez desde o final do regime militar, a extrema direita chegou ao Planalto eleita pelo voto. Generais se espalharam pelo governo, enquanto falanges radicais passaram a pregar nas ruas golpe de Estado e o fechamento do STF. A tensão só diminuiu porque as instituições resistiram. Não podem fraquejar, como o próprio ministro reiterou em sua despedida, ao se dizer confiante na “integridade e independência” da Corte, “por mais desafiadore, difíceis e nebulosos que possam ser os tempos que virão e os ventos que soprarão”.

Com o tempo, Celso se tornou o voto de balizamento do Supremo. Não é possível enquadrá-lo em nenhum dos polos da Corte, nem no “garantismo”, nem no “punitivismo”. O Celso de Mello “garantista” foi contra o cumprimento de pena a partir da condenação em segunda instância. Também viu “inúmeros problemas” em delações premiadas. O Celso de Mello “punitivista” aceitou denúncias feitas por delatores e redigiu ácidos votos condenatórios no julgamento do mensalão.

A condição de “voto do meio” lhe garantiu credibilidade para fortalecer o avanço progressista em diversos campos. Já em 1997 defendia, para efeito de punição, distinguir traficante e usuário de drogas, conceito adotado pela lei só em 2006. Também defendeu que o antissemitismo deveria ser punido como forma de racismo, interpretação que o tribunal faria depois com homofobia e transfobia. Sempre votou pelas ações afirmativas não só de cunho racial, como a favor do ensino inclusivo de crianças com deficiência (direito que o governo Bolsonaro deseja revogar). Sua abertura para temas da sociedade, algo dissonante com a imagem de juiz circunspecto, o levou a apoiar as uniões homoafetivas, assim como a permissão ao aborto de fetos anecéfalos e as pesquisas com células embrionárias.

Em três décadas de Corte, Celso tornou-se um exemplo na defesa da Constituição, dos direitos nela estabelecidos e da lei, como demonstrou na despedida. Em 2009, ao votar pelo fim da Lei de Imprensa, entulho da ditadura, afirmou: “Nada mais nocivo, nada mais perigoso que a pretensão do Estado de regular a liberdade de expressão, pois o pensamento há de ser livre, permanentemente livre, essencialmente livre, sempre livre”. Diante de uma declaração dessas, não é difícil entender que qualquer substituto terá dificuldade para preencher seu espaço — e que deveria, como toda a Corte, se inspirar no legado do decano que se aposenta.

Futuro prefeito do Rio precisará reconciliar o carioca com a cidade – Opinião | O Globo

Pesquisa mostra que 57% dos moradores se mudariam da capital fluminense se pudessem

A paixão do carioca pelo Rio, que já inspirou obras-primas como o “Samba do avião”, de Tom Jobim, enfrenta momentos de turbulência. Pesquisa Ibope sobre as intenções de voto para as eleições de novembro, divulgada no último dia 2, mostra que 57% dos moradores se mudariam da capital fluminense se pudessem. Um dado surpreendente para a cidade que ostenta o metro quadrado mais caro do país (R$ 9.347), praias famosas no mundo inteiro e paisagens deslumbrantes.

A própria pesquisa fornece pistas sobre os motivos que abalaram a relação do carioca com a cidade. De acordo com o Ibope, os problemas mais graves enfrentados pelos moradores do Rio são saúde (mencionada em 74% das respostas), educação (45%), segurança pública (37%) e corrupção (31%).

É sintomático que a saúde esteja no topo do ranking. A pandemia de Covid-19 não é a única vilã. A saúde do Rio está debilitada há tempos. Eleito com o discurso de que ia “cuidar das pessoas”, o prefeito Marcelo Crivella não cumpriu a promessa. Em vez disso, contratou uma tropa de “guardiões” para dar plantão em frente aos hospitais e impedir denúncias da indigência da rede pública.

Sobre o estado da educação, basta dizer que, enquanto praticamente todos já retomaram atividades em algum grau, os alunos das escolas públicas municipais, estaduais e federais no Rio permanecem em casa. Só os estabelecimentos particulares reabriram, após um interminável vaivém jurídico.

Segurança pública é preocupação recorrente. Embora crimes tenham caído na pandemia, persiste o desassossego. Há pouco mais de um mês, facções criminosas transformaram as ruas da região central em campo de batalha, com a morte de uma mulher que tentava proteger o filho pequeno.

No estado onde cinco inquilinos do Palácio Guanabara foram presos por corrupção, o governador Wilson Witzel está afastado sob acusação de fraudes na saúde em plena pandemia. O prefeito Crivella enfrenta denúncias de que havia um QG da propina instalado dentro da prefeitura.

Para Renato Lessa, professor de filosofia política da PUC-RJ, o sentimento do carioca é plenamente justificável: “Nos últimos anos, houve uma degradação institucional muito grande, uma perda de qualidade de governança inédita na história da cidade. Mas o carioca é responsável por suas escolhas”.

O próximo prefeito, que herdará uma cidade malconservada, desigual, com a economia devastada pela pandemia, terá enormes desafios nos próximos quatro anos. Um deles é reconciliar o carioca com o Rio. É perfeitamente viável, mas não será tarefa fácil.

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