Goste-se
ou não das alianças no Congresso ou de sua indicação para o Supremo, o fato é
que Bolsonaro se livrou de uma postura que causava instabilidade
Ao
contrário dos Estados Unidos, que têm eleições presidenciais ininterruptas
desde 1789, a democracia brasileira sofreu dois longos períodos de
descontinuidade desde a proclamação da República, em 1889. Na última
oportunidade, durante a ditadura militar, foram 29 anos sem que os eleitores
pudessem escolher o presidente. A retomada aconteceu em 1989, com a vitória de
Fernando Collor de Mello — de lá para cá, houve uma sequência de pleitos sem
sobressaltos. Embora tenha demonstrado vigor, ancorado em instituições cada vez
mais fortes, o sistema democrático brasileiro, convém lembrar, é jovem — e,
portanto, sujeito a retrocessos. Daí a imensa preocupação desde a posse de Jair
Bolsonaro. Dono de uma carreira singular, o presidente construiu sua trajetória
política numa espécie de bolha, com pouca capacidade de negociação e um
discurso voltado para nichos muito específicos, principalmente os militares.
Nessa jornada, por diversas vezes, demonstrou desprezo pela democracia e pelas
liberdades individuais.
Uma
vez no Palácio do Planalto, o presidente infelizmente não surpreendeu
positivamente. Por meio de postagens desastradas no Twitter e comentários pouco
cautelosos, entrou em conflito com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal com
preocupante frequência. Até muito recentemente, fazia do confronto permanente a
sua estratégia de negociação, um processo que poderia levar o país a um ponto
de ruptura entre as instituições. Para piorar, incentivava uma claque de desajustados
que organizavam manifestações pedindo a volta da ditadura e o fechamento do
Parlamento e do STF. Numa dessas ocasiões, um desses desvairados soltou fogos
de artifício em frente ao tribunal. Uma cena lamentável que, ao lado de outras
aberrações, virava rotina em Brasília. Em todos esses momentos, VEJA foi
rigorosa, ao registrar tais barbaridades e atropelos em capas, longas
reportagens e críticas veementes na Carta ao Leitor. Afinal, a defesa
intransigente da democracia e das instituições é parte inegociável da nossa
missão e de nossos valores.
Por
essa razão, precisamos ser justos agora e saudar de forma efusiva a
transformação pela qual o presidente vem passando nos últimos três meses.
Goste-se ou não das alianças no Congresso ou de sua indicação para o Supremo, o
fato é que Bolsonaro saiu da postura anterior, que causava instabilidade, para
o exercício natural da negociação política. Antes, ele fustigava o STF e
desprezava a formação de uma maioria no Parlamento. Havia no ar um medo de
golpe. Hoje, abre canais de entendimento com ministros do tribunal e senta-se à
mesa para negociar com congressistas. Como mostra a reportagem que começa na
página 30, sua articulação política foi entregue a profissionais, como o
ministro Fábio Faria, os líderes do governo Ricardo Barros e Eduardo Gomes, e o
deputado Arthur Lira. Ainda que entre os motivos para tal mudança possa estar o
temor de sofrer um impeachment, trata-se de uma evolução bem-vinda e oportuna
do presidente. Há muitos desafios pela frente no Brasil — da economia às causas
sociais. Saber, ao menos, que a democracia não sofre riscos, que os poderes
começam a trabalhar em harmonia, é um alívio e, diante do passado recente, um
baita avanço.
*Publicado
em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708
A lei é para todos – Opinião | O Estado de S. Paulo
Ensinamento
de Celso de Mello, em sua última sessão do Supremo, deve servir de reflexão
para todo o Poder Judiciário, em suas diversas instâncias
Na última sessão como integrante do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello reiterou o entendimento de que as regras processuais penais devem ser aplicadas integralmente ao presidente da República, sem nenhum tipo de privilégio. O caso julgado refere-se ao recurso do presidente Jair Bolsonaro contra a decisão que negou a possibilidade de prestar depoimento por escrito no Inquérito 4.831, que investiga suposta tentativa de interferência política na Polícia Federal. No seu voto, em que negou provimento ao recurso do presidente, o decano do STF lembrou aspectos fundamentais da República.
“A
ideia de República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental: o
do primado da igualdade de todos perante as leis do Estado. (...) Ninguém, absolutamente
ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado”, disse
Celso de Mello. Para o decano, a lei processual é clara. Na condição de
testemunhas, as autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
podem ser ouvidas em local, dia e hora previamente ajustados entre elas e o
juiz. No entanto, não existe essa prerrogativa no Código de Processo Penal,
quando as autoridades estão na condição de investigadas. No caso, o inquérito
investiga a conduta de Jair Bolsonaro.
“O
postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações, impedindo
que se estabeleçam tratamentos seletivos em favor de determinadas pessoas e
obstando que se imponham restrições gravosas em detrimento de outras, em razão
de sua condição social, de nascimento, de parentesco, de gênero, de amizade, de
origem étnica, de orientação sexual ou de posição estamental, eis que nada pode
autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República, sob pena de
transgredir-se o valor fundamental que informa a própria configuração da ideia
de República, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade”, disse o
decano do STF.
O
ministro Celso de Mello também lembrou que “a estrita observância da forma
processual representa garantia plena de liberdade e de respeito aos direitos e
prerrogativas que o ordenamento positivo confere a qualquer pessoa sob
persecução penal”. Ou seja, a aplicação da lei no caso concreto, sem inventar
uma prerrogativa inexistente na lei, não é um ato de perseguição contra o
presidente da República, tampouco representa uma tentativa de restringir seus
direitos e garantias como investigado.
“A
tutela da liberdade, nesse contexto, representa insuperável limitação
constitucional ao poder persecutório do Estado, mesmo porque – ninguém o ignora
– o processo penal qualifica-se como instrumento de proteção dos direitos e
garantias fundamentais daquele que é submetido, por iniciativa do Estado, a
atos de persecução penal, cuja prática somente se legitima dentro de um círculo
intransponível e predeterminado pelas restrições fixadas pela própria
Constituição da República”, lembrou o ministro Celso de Mello.
Em
seu voto, o decano do STF reconheceu que, em anos recentes, houve decisões
monocráticas da Justiça autorizando que autoridades, mesmo na condição de
investigadas, prestassem depoimento por escrito. A Procuradoria-Geral da
República (PGR) alegou que, em razão do princípio da igualdade, o mesmo
tratamento deveria ser concedido ao presidente Jair Bolsonaro.
O
ministro Celso de Mello lembrou uma realidade fundamental. “O postulado da
isonomia visa justamente evitar a concessão de privilégios injustificáveis – e
inexistentes em lei – para determinado grupo de pessoas ou para certas
autoridades públicas, ainda que se trate do Chefe de Estado”, disse.
Esse
ensinamento do ministro Celso de Mello, em sua última sessão do Supremo, deve
servir de reflexão para todo o Poder Judiciário, em suas diversas instâncias.
Frequentemente, o princípio da igualdade é aplicado de forma distorcida. A
indevida concessão de um privilégio num caso torna-se pretexto para repetir e
ampliar o erro. O princípio da igualdade vem assegurar direitos iguais, e não
ampliar privilégios. O critério é sempre a lei.
Cavalo de pau – Opinião | O Estado de S. Paulo
Na
ânsia do presidente de se manter no poder, não há vaca sagrada que não possa
ser sacrificada
O presidente Jair Bolsonaro diz que é fake news. O ministro da Economia, Paulo Guedes, jura que é “conversa fiada”. Mas o fato é que não se fala de outra coisa em Brasília: o Centrão quer que Bolsonaro recrie alguns Ministérios, inclusive na área econômica, para acomodar aliados e reforçar a base governista.
O
movimento não surpreende ninguém. O Centrão é formado por partidos cuja vocação
é o governismo, qualquer que seja a orientação ideológica e programática do
governo de turno. O único interesse dessas agremiações é ter acesso a verbas e
nomeações que lhes assegurem poder, recursos e força eleitoral. Em troca, votam
com o Palácio do Planalto – o velho “toma lá dá cá”.
Não
é preciso um grande esforço de memória para lembrar que Bolsonaro fez toda a
sua campanha eleitoral prometendo reduzir o número de Ministérios para no
máximo 15 e escolher ministros segundo critérios técnicos, sem favorecer este
ou aquele partido aliado. De fato, Bolsonaro vinha cumprindo parcialmente essa
promessa: se o número de Ministérios está em 23, bem longe dos 15 anunciados, o
preenchimento das vagas não seguiu o figurino fisiológico a que o País se
acostumou.
Mas
nada como um dia após o outro – com as muitas vicissitudes do poder entre eles.
Depois de sentir na pele a ameaça, real ou não, de se ver prematuramente
destituído da Presidência e de ter a Justiça nos seus calcanhares e no de seus
filhos, deu um cavalo de pau no seu governo e no seu comportamento.
Trocou
as bravatas diárias contra os demais Poderes e contra a democracia pelo
silêncio. Ao mesmo tempo, livrou-se aos poucos dos áulicos amadores e
acercou-se de operadores profissionais. O primeiro indício disso já havia se
revelado em junho, quando Bolsonaro recriou o Ministério das Comunicações para
entregá-lo a um indicado pelo Centrão. Foi o começo do fim do tonitruante Bolsonaro
que venceu a eleição – e que prometia enterrar a velha política – e sua
reconversão, discreta, mas irresistível, ao varejo oportunista que ele, afinal,
conhece há décadas.
O
“novo” Bolsonaro de “novo”, portanto, não tem nada. Na ânsia do presidente de se
manter no poder e de se proteger da Justiça, não há vaca sagrada que não possa
ser sacrificada – o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro que o diga.
Assim,
não será surpresa se, de acordo com a necessidade, o Ministério “enxuto” e
“técnico” de Bolsonaro alcance em algum momento no futuro as inacreditáveis 39
pastas de Dilma Rousseff – que as criava na exata proporção de seu galopante
enfraquecimento político. No desespero de se manter no poder, Dilma e os
operadores petistas lotearam praticamente todo o governo – o ex-presidente Lula
da Silva chegou a transformar um quarto de hotel em Brasília em um escritório
para negociar cargos com políticos e partidos a poucos dias da votação do
impeachment. Como se sabe, debalde.
O
fato é que o faro do Centrão para presidentes encrencados continua apurado. E a
aposta, desta vez, é alta: consta que o alvo desses partidos agora é a seara do
ministro Paulo Guedes. Querem a recriação dos Ministérios da Indústria e
Comércio e do Trabalho e Previdência, que haviam sido absorvidos pelo
“superministério” da Economia.
O
avanço do Centrão sobre a Economia, se consumado, concluirá o passamento do
“superministro” Paulo Guedes, reduzido cada vez mais à categoria de mero
consultor do presidente para assuntos econômicos. Tudo isso no momento em que o
presidente está sendo pressionado pelas terríveis circunstâncias – a pandemia
de covid-19 e a perda de renda de milhões de brasileiros – a tomar decisões
que, se mal concebidas, podem ameaçar o já bastante frágil estado das contas
nacionais.
Na
prática, a política econômica corre o sério risco de se converter em
instrumento do populismo do Centrão e de seu novo melhor amigo, o presidente
Bolsonaro, cujas juras de responsabilidade fiscal são, na melhor hipótese,
duvidosas. Esse desfecho pode ser ótimo para as pretensões eleitorais imediatas
de todos eles, mas sem dúvida será péssimo para o País.
Drible na lei – Opinião | Folha de S. Paulo
Empresas
desafiam Justiça ao oferecer disparo de mensagens e cadastro de eleitor
Foi
modesto o progresso feito pelo Brasil desde o surgimento das primeiras evidências
de que novas tecnologias passaram a ser usadas para espalhar desinformação e
envenenar o debate público no país.
A
Justiça Eleitoral parece ter adquirido maior entendimento do problema, e uma
resolução aprovada no fim do ano passado proibiu o uso de aplicativos de
mensagens para distribuir propaganda política de forma massiva.
Mas
permanece constrangedor o fracasso das autoridades em levar adiante as
investigações sobre os empresários que financiaram ilegalmente uma operação
desse tipo na reta final da disputa presidencial de 2018, com o fim de
beneficiar a campanha de Jair Bolsonaro, como a Folha revelou na época.
O
WhatsApp, serviço de mensagens que se tornou um instrumento perigoso nas mãos
dos que promovem campanhas de desinformação, adotou regras mais estritas e
tomou diversas medidas para inibir o mau uso de sua plataforma.
A
despeito desses esforços, entretanto, surgem a todo momento novos indícios de
que políticos e empresários mal-intencionados continuam encontrando brechas
para disseminar falsidades e atingir eleitores desprevenidos por meio de
aplicativos e redes sociais.
Como
este jornal revelou na última segunda-feira (5), pelo menos cinco
empresas têm oferecido abertamente no mercado serviços de disparo em massa de
mensagens políticas, garantindo a seus clientes meios de contornar as barreiras
criadas recentemente.
Vendem-se
também cadastros com informações pessoais de eleitores, extraídas das
plataformas de modo aparentemente furtivo, sem que os usuários desses serviços
tivessem autorizado o compartilhamento de seus dados para esse fim.
Empresas
como o Facebook, que é dono do WhatsApp, mostram-se dispostas a cooperar com a
fiscalização e dizem ter aperfeiçoado métodos de detecção de atividades
suspeitas e agido contra milhares de infratores. Mas suas ações têm se revelado
insuficientes para lidar com o problema, além de pouco transparentes para o
público.
Dadas
as limitações impostas pela pandemia do coronavírus à campanha deste ano,
candidatos a prefeito e vereador têm procurado novas maneiras de se comunicar
com o eleitorado, e muitos decerto não resistirão à tentação de desafiar a lei
para alcançá-los.
Não
se ignoram as dificuldades enfrentadas em toda parte para conter a disseminação
de falsidades na internet. Mas cabe à Justiça Eleitoral buscar os meios de
superá-las e assim cumprir sua missão de zelar para que a competição se dê em
ambiente propício ao debate de ideias. A inércia custará caro, e o prejuízo
ficará com o eleitor.
Organizar a pauta – Opinião | Folha de S. Paulo
Maia
acerta em priorizar a PEC Emergencial; Executivo deve abraçar racionalidade
Selada
em jantar nesta semana, vem em boa hora a trégua entre o ministro da Economia,
Paulo Guedes, e o
presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Após meses de
conflitos, surge oportunidade para organizar a pauta econômica mais essencial.
Há
urgência na discussão do Orçamento de 2021. A busca por fontes de financiamento
para a ampliação de transferências de renda às famílias pobres se transformou
em enorme confusão, agravada pelo flerte do governo com novas pedaladas
fiscais.
O
problema está no presidente Jair Bolsonaro, avesso a decisões difíceis que
afrontem qualquer grupo de interesse no período eleitoral. Mas está também em
Guedes e sua equipe, que até agora se mostraram incapazes de oferecer opções
factíveis que não desrespeitem o limite para os gastos federais inscrito na
Constituição.
O
respeito ao teto é essencial no contexto atual em que a dívida pública cresce
sem controle. Soluções populistas não funcionarão, pois levarão a uma crise
orçamentária e ao descontrole econômico.
Um
bom começo seria dimensionar bem o desejado programa Renda Cidadã,
especificando o público que se quer atender e o impacto potencial na redução da
pobreza —para então debater o custo e de onde virá o dinheiro.
Bolsonaro
já disse que não quer tratar do assunto antes das eleições municipais, o que
pode ser boa notícia se o tempo for usado de forma construtiva e competente na
construção de uma solução.
Na
prática, o desafio é abrir espaço no Orçamento, substituindo outras despesas
sem criar malabarismos. Nesse sentido, o presidente da Câmara tem a visão
correta.
A
melhor opção para compatibilizar a ampliação do gasto social e o ajuste das
contas públicas é avançar com a chamada PEC Emergencial —proposta que ajudará a
conter despesas obrigatórias, sobretudo com a folha de pagamento dos
servidores, incluindo a permissão para corte de jornada e salários.
Como
seu próprio nome deixa claro, o texto não constitui uma resposta para o longo
prazo, que dependerá de medidas adicionais, como a reforma administrativa.
Entretanto é necessário começar por ela, como disse Maia.
Outras
pautas, como a reforma tributária, ficarão para o ano que vem. Até lá, Guedes
faria bem em abandonar ideias como a recriação da CPMF e se concentrar no que é
mais urgente e consensual.
O exemplo de Celso de Mello para o STF – Opinião | O Globo
Não
só seu substituto, mas todo o tribunal deveria se inspirar no legado do decano
que se aposenta
Em
seu voto de despedida do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello
reafirmou que o presidente Jair Bolsonaro deve prestar depoimento em pessoa no
inquérito em que é acusado de tentar intervir na Polícia Federal. Na última
sessão plenária de que participou, na quinta-feira, o decano da Corte usou um
argumento que resume sua trajetória de três décadas no STF: “Ninguém, nem mesmo
o chefe do Poder Executivo da União, está acima da autoridade da Constituição e
das leis da República”.
Celso
fará falta. Indicado ao Supremo em 1987 pelo presidente José Sarney, ele se
retira da Corte em tempos de tensão institucional. Pela primeira vez desde o
final do regime militar, a extrema direita chegou ao Planalto eleita pelo voto.
Generais se espalharam pelo governo, enquanto falanges radicais passaram a
pregar nas ruas golpe de Estado e o fechamento do STF. A tensão só diminuiu
porque as instituições resistiram. Não podem fraquejar, como o próprio ministro
reiterou em sua despedida, ao se dizer confiante na “integridade e
independência” da Corte, “por mais desafiadore, difíceis e nebulosos que possam
ser os tempos que virão e os ventos que soprarão”.
Com
o tempo, Celso se tornou o voto de balizamento do Supremo. Não é possível
enquadrá-lo em nenhum dos polos da Corte, nem no “garantismo”, nem no
“punitivismo”. O Celso de Mello “garantista” foi contra o cumprimento de pena a
partir da condenação em segunda instância. Também viu “inúmeros problemas” em
delações premiadas. O Celso de Mello “punitivista” aceitou denúncias feitas por
delatores e redigiu ácidos votos condenatórios no julgamento do mensalão.
A
condição de “voto do meio” lhe garantiu credibilidade para fortalecer o avanço
progressista em diversos campos. Já em 1997 defendia, para efeito de punição,
distinguir traficante e usuário de drogas, conceito adotado pela lei só em
2006. Também defendeu que o antissemitismo deveria ser punido como forma de
racismo, interpretação que o tribunal faria depois com homofobia e transfobia.
Sempre votou pelas ações afirmativas não só de cunho racial, como a favor do
ensino inclusivo de crianças com deficiência (direito que o governo Bolsonaro
deseja revogar). Sua abertura para temas da sociedade, algo dissonante com a
imagem de juiz circunspecto, o levou a apoiar as uniões homoafetivas, assim
como a permissão ao aborto de fetos anecéfalos e as pesquisas com células
embrionárias.
Em
três décadas de Corte, Celso tornou-se um exemplo na defesa da Constituição,
dos direitos nela estabelecidos e da lei, como demonstrou na despedida. Em
2009, ao votar pelo fim da Lei de Imprensa, entulho da ditadura, afirmou: “Nada
mais nocivo, nada mais perigoso que a pretensão do Estado de regular a liberdade
de expressão, pois o pensamento há de ser livre, permanentemente livre,
essencialmente livre, sempre livre”. Diante de uma declaração dessas, não é
difícil entender que qualquer substituto terá dificuldade para preencher seu
espaço — e que deveria, como toda a Corte, se inspirar no legado do decano que
se aposenta.
Futuro prefeito do Rio precisará reconciliar o carioca com a cidade – Opinião | O Globo
Pesquisa
mostra que 57% dos moradores se mudariam da capital fluminense se pudessem
A
paixão do carioca pelo Rio, que já inspirou obras-primas como o “Samba do
avião”, de Tom Jobim, enfrenta momentos de turbulência. Pesquisa Ibope sobre as
intenções de voto para as eleições de novembro, divulgada no último dia 2,
mostra que 57% dos moradores se mudariam da capital fluminense se pudessem. Um
dado surpreendente para a cidade que ostenta o metro quadrado mais caro do país
(R$ 9.347), praias famosas no mundo inteiro e paisagens deslumbrantes.
A
própria pesquisa fornece pistas sobre os motivos que abalaram a relação do
carioca com a cidade. De acordo com o Ibope, os problemas mais graves
enfrentados pelos moradores do Rio são saúde (mencionada em 74% das respostas),
educação (45%), segurança pública (37%) e corrupção (31%).
É
sintomático que a saúde esteja no topo do ranking. A pandemia de Covid-19 não é
a única vilã. A saúde do Rio está debilitada há tempos. Eleito com o discurso
de que ia “cuidar das pessoas”, o prefeito Marcelo Crivella não cumpriu a
promessa. Em vez disso, contratou uma tropa de “guardiões” para dar plantão em
frente aos hospitais e impedir denúncias da indigência da rede pública.
Sobre
o estado da educação, basta dizer que, enquanto praticamente todos já retomaram
atividades em algum grau, os alunos das escolas públicas municipais, estaduais
e federais no Rio permanecem em casa. Só os estabelecimentos particulares
reabriram, após um interminável vaivém jurídico.
Segurança
pública é preocupação recorrente. Embora crimes tenham caído na pandemia,
persiste o desassossego. Há pouco mais de um mês, facções criminosas transformaram
as ruas da região central em campo de batalha, com a morte de uma mulher que
tentava proteger o filho pequeno.
No
estado onde cinco inquilinos do Palácio Guanabara foram presos por corrupção, o
governador Wilson Witzel está afastado sob acusação de fraudes na saúde em
plena pandemia. O prefeito Crivella enfrenta denúncias de que havia um QG da
propina instalado dentro da prefeitura.
Para
Renato Lessa, professor de filosofia política da PUC-RJ, o sentimento do
carioca é plenamente justificável: “Nos últimos anos, houve uma degradação
institucional muito grande, uma perda de qualidade de governança inédita na
história da cidade. Mas o carioca é responsável por suas escolhas”.
O próximo prefeito, que herdará uma cidade malconservada, desigual, com a economia devastada pela pandemia, terá enormes desafios nos próximos quatro anos. Um deles é reconciliar o carioca com o Rio. É perfeitamente viável, mas não será tarefa fácil.
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