Em
carta, papa Francisco propõe o retorno à política como diálogo
Vinicius
de Moraes, como dizia Tom Jobim, foi uma figura múltipla, ubíqua, "fosse apenas
um, seria Viníciu de Moral". Mesmo assim, causou uma certa surpresa
vê-lo citado
numa encíclica papal, com direito a aspas e nota de rodapé, ainda mais pelo
seu "Samba da Bênção", em parceria com Baden Powell, em que o
poetinha se apresenta como herdeiro de Xangô.
Tá
certo que não se trata de um papa qualquer, mas de Francisco, que veio do fim
do mundo, é torcedor do San Lorenzo e dançarino de tango; ou de uma encíclica
propriamente religiosa, como me explicaram alguns entendidos. O documento
condensa, em 287 parágrafos, os diálogos e a visão pessoal construída por
Francisco sobre a fraternidade e a amizade social, no decorrer de seu
pontificado.
Em
face dessas peculiaridades, tomo a liberdade de partilhar com os generosos
leitores algumas impressões laicas sobre a encíclica, especialmente sobre o
conceito de política defendido pelo documento.
Desde
o início da carta, Francisco alerta que estamos vivendo um momento marcado por
uma forte polarização, pelo ressurgimento de um nacionalismo fechado,
anacrônico e ressentido, onde a ameaça e a desqualificação do outro estão
transformando a política numa guerra de todos contra todos, "onde vencer
se torna sinônimo de destruir". A polarização e a exclusão também abrem
espaço para líderes que se colocam como intérpretes exclusivos da vontade do
povo, mas não de um conceito aberto e inclusivo de povo, se não de uma
concepção manipulada e excludente; o que se torna mais grave quando esses
populistas pretendem "com formas rudes ou sutis" alcançar "o
servilismo das instituições e da legalidade".
Nesse
contexto, em que as pessoas se sentem amedrontadas e abandonadas, também
"surge um terreno fértil para as máfias", que se impõem aos
esquecidos, oferecendo segurança e outros falsos benefícios enquanto
"perseguem seus interesses criminosos".
Francisco
chama a atenção, ainda, para as relações dessa antipolítica com a crença
neoliberal de que todas as dificuldades e injustiças serão resolvidas com
exclusividade pelo mercado.
Em
nenhum momento nega a importância do mercado na criação de riqueza, mas reclama
que a política seja capaz de lhe dar contornos, sem os quais serão alargadas as
"fronteiras da pobreza", assim como devastados os recursos naturais
que nos sustentam. A paz e a prosperidade de poucos não podem se dar em
detrimento dos muitos pobres e do futuro de todos. Alerta, também, para a impossibilidade
de existência de uma vida privada, da intimidade, de um lar acolhedor, sem que
haja a tranquilidade assegurada pelo Estado de Direito.
Mas
o que propõe Francisco? Em primeiro lugar, que precisamos retornar para a
política! Não como confronto e eliminação do outro. "A paz social é
laboriosa, artesanal" e ela não pode ser conquistada sem que sejamos
capazes de coordenar, por meio da política, as disputas e os diferentes pontos
de vista. Aqui é que entra "a arte do encontro", de nosso Vinicius. O
diálogo, o pluralismo, a diversidade e o reconhecimento do outro como sujeito
de direitos universais, devem ser compreendidos como elementos constitutivos do
conceito de política.
Não
deixa de ser paradoxal que a proposta de uma política como uma ética da
coexistência, voltada à construção do bem comum, venha do chefe de uma velha
monarquia que tanto violou esses princípios. Mas essa é apenas mais uma
daquelas contradições que só a política é capaz de superar.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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