sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Flávia Oliveira - Vejam lá o que vão fazer

- O Globo

Brasileiros têm votado com o fígado, metáfora para a força do ódio, e colhido retrocesso

Da última vez em que votaram para prefeito, em 2016, os cariocas elegeram Marcelo Crivella, ora rejeitado por seis entre dez moradores. Os brasileiros, dois anos atrás, legaram o Palácio do Planalto àquele que, sem justificativa para a coleção de fracassos econômicos e sociais, compra briga com vacina e ameaça com pólvora o presidente eleito dos EUA, o democrata Joe Biden, a quem, em negação, ainda se refere como candidato. Sem falar em Sérgio Cabral, dois mandatos no Guanabara, hoje condenado a quase três séculos de prisão; e Wilson Witzel, governador escolhido em 2018, afastado em agosto passado, despejado da residência oficial no início da semana. Domingo é dia de voto. Vejam lá o que vão fazer.

Os institutos de pesquisa têm indicado que, Brasil afora, eleitores andam reticentes à tal da nova política na corrida municipal deste 2020 de pandemia da Covid-19, desemprego galopante, inflação de alimentos, recrudescimento da fome. No Rio de Janeiro, quatro nomes conhecidos — além de Crivella (Republicanos), o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), a deputada federal Benedita da Silva (PT), a deputada estadual Martha Rocha (PDT) — encabeçam as consultas de intenção de votos desde o início da campanha, em setembro. Um deles receberá uma cidade completamente entregue às baratas.

Convém lembrar que, também no 15 de novembro, serão escolhidos os 51 vereadores para a Câmara Municipal. Ano passado, 35 deles livraram o atual prefeito de um processo de impeachment. Este ano, por duas vezes — primeiro 25, depois 24 deles — rejeitaram a abertura do processo de afastamento pelos escândalos dos Guardiões do Crivella e do QG da Propina. Os nomes são facilmente encontrados em sites de busca. Segundo o Datafolha, 62% dos cariocas dizem que “não votariam no prefeito de jeito nenhum”. É nível recorde de rejeição.

O Rio é um mar de problemas: segunda onda da pandemia à espreita, um ano letivo perdido nas escolas públicas, sistema de transporte sucateado, escassez de investimentos. De janeiro a setembro, segundo o Caged/Ministério da Economia, 109 mil empregos com carteira assinada desapareceram, evidência de falta de vigor econômico, mesmo depois da flexibilização do isolamento social. A cidade está refém de grupos armados da milícia e do tráfico, ambiente incompatível com o que se entende seriamente por democracia. Foi engolfada por uma atmosfera de abandono, que não permite a um jovem pai sair do Centro tarde da noite e chegar vivo em casa. Aconteceu com o cineasta Cadu Barcellos, profissional de imenso talento e coração ainda maior, esfaqueado até a morte numa das mais conhecidas vias da cidade, a Avenida Presidente Vargas.

O carioca que vai às urnas no domingo está penando com falta de dinheiro. Dois em três, a maioria mulheres, disseram ao Datafolha que perderam renda nos últimos meses. Para sobreviver, reduziram (29%) a compra de comida, primeira etapa da situação de insegurança alimentar; cortaram consumo de contas de água, luz e gás (19%); desistiram do plano de saúde (um em dez). Ao todo, 35% dos entrevistados receberam o auxílio emergencial, benefício federal de R$ 600 por cinco meses e R$ 300 até dezembro.

A vulnerabilidade social é crescente na cidade, no estado, no país. Ainda ontem, o IBGE informou que o Brasil, em 2019, era o nono país mais desigual do mundo e, comparado ao grupo de nações da OCDE, estava entre os quatro com maior proporção de desempregados há mais de um ano. Dois anos atrás, 57 milhões de brasileiros escolheram Jair Bolsonaro presidente, por simpatia à extrema-direita, ódio ao PT e à esquerda, apreço à agenda liberal de Paulo Guedes. Até aqui, o superministro da Economia só entregou a reforma da Previdência. O PIB patinou no ano passado e, com a pandemia, despencará quase 5% este ano. O desemprego é o maior em oito anos: alcança 13,8 milhões de brasileiros; outros 13 milhões gostariam de trabalhar, mas não estão procurando vaga.

A inflação dos alimentos explodiu, na esteira do dólar e da demanda aquecida pela recuperação econômica da China. Nos 12 meses até outubro, o índice da meta de inflação subiu 3,92%, enquanto os preços da alimentação no domicílio, aquela dos produtos vendidos em supermercados e feiras, disparou 18,41%. Sem saber o que fazer com a política social, o presidente decidiu esperar o fim das eleições municipais. Esta semana, o Bradesco estimou que o fim do auxílio emergencial tirará R$ 100 bilhões do consumo no início de 2021. Ontem o ministro desagradou ao mercado ao prometer a volta do benefício, em caso de agravamento da pandemia que o presidente minimiza. Não por acaso, a popularidade de Jair Bolsonaro começou a cair, tal qual a preferência pelos candidatos que apoia.

Os brasileiros têm votado com o fígado, metáfora para a força do ódio, e colhido retrocesso. Convém, neste domingo, respirar fundo e escolher com cérebro e coração. Por respeito às instituições democráticas. Pelo bem de todos. Usando máscara, como recomenda o TSE.

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