Cerco
a Flávio afeta o equilíbrio do presidente, que abre a tampa do bueiro
Jair
Bolsonaro vai dar trabalho. O cerco dos
fatos ao senador Flávio Bolsonaro afeta o seu equilíbrio
instável, e ele abre a tampa do bueiro. Chama os
brasileiros de “maricas”, ameaça os EUA com retaliação militar,
mente sobre efeitos colaterais da vacina, anuncia a cura da Covid-19, mergulha
numa espiral de demência.
Chega
mesmo a ter um rasgo de sinceridade ao afirmar:
“A minha vida aqui é uma desgraça, é problema o tempo todo, não tenho paz para
absolutamente nada”. E lá vem um novo ataque aos de sempre, aos urubus: “Não
posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel. Quando eu saio, vem
essa imprensa perturbar.”
Imagine
aí, leitor, que atividades a palavra “nada” resume. Não enchêssemos tanto a
paciência de Bolsonaro, não existisse um país para ele governar, em que
ocuparia o seu tempo, além de tomar caldo de cana e comer pastel? FHC foi
entrevistado logo depois de deixar o poder. Quiseram saber se experimentava
alguma sensação de vazio, alguma melancolia de rei destronado.
Respondeu
muito calmamente, cito de memória, que levava consigo as preocupações de antes,
suas inquietações intelectuais, seus livros. Tinha com que ocupar seu tempo
distante das rinhas políticas e da disputa pelo poder. Estas, sim, ao lhe impor
a ética da responsabilidade, eram mais maçantes do que as convicções de quem
tem uma vida
intelectual ativa, pautada por utopias, desejos, prefigurações.
Não
sou especialista na psique humana. Há bons profissionais no Brasil dedicados à
área. Acredito que, atravessando a casca do ogro, consigam descobrir em
Bolsonaro também o ser que genuinamente sofre. E, se querem saber, ele vive a
pior de todas as tragédias intelectuais: ser mero figurante de um enredo que
reserva a alguém na sua posição o papel de protagonista.
Ah,
Bolsonaro poderia perfeitamente dizer, parodiando o poeta: “Olhem que não há
mais metafísica do que o pastel e o caldo de cana”. Ali está a sua essência. A
Presidência da República o obriga a sair de um mundo em que há satisfação para
os desejos. Na função em que está, não existe paz, e todas as respostas serão
sempre precárias. Mais: o cargo impõe que empatize com as dores dos que sofrem.
E ele veio desprovido dessa faculdade. É uma condição clínica.
À
margem do poder, estimulava a fantasia de que um dia seria presidente da
República, mas não era para valer. Preparou o clã para obter os benefícios
oriundos da gestão de verbas de gabinete, do salário de
funcionários geridos por um Queiroz, e tudo caminhava a contento,
vociferando contra minorias e pregando uma rigidez de comportamento que, como
resta evidente, não é seguida nem pelos membros da família.
Circunstâncias
que agora não vêm ao caso, que provocaram um desequilíbrio ecológico na
política, o alçaram, de fato, à Presidência. E é aí que tem início a combinação
de pesadelos que o leva a dizer sandices e que pode, sim, torná-lo uma pessoa
perigosa.
A
função o obriga a fazer escolhas sobre temas que desconhece. Quem não
desenvolve a empatia também é incapaz de manter relações de confiança. Deve ser
um inferno experimentar a sensação
permanente de que está sendo trapaceado. Tudo à sua volta fala um
idioma que ele ignora.
A
vida assim já deve ser um tormento. Mas há bem mais do que isso: o passado
assombra o presente por intermédio das peripécias havidas no gabinete do então
deputado estadual Flávio Bolsonaro, agora senador. O presidente é inteligente o
suficiente para saber que as chances de um desfecho virtuoso para a família são
reduzidas.
O
casamento da redução do
auxílio emergencial com a inflação de alimentos corrói a sua
popularidade e ameaça a sua posição. Esse poder que lhe tira a paz de espírito
também lhe garante imunidade e lhe permite ao menos retardar a tempestade que
colherá o primogênito e, por extensão, o clã.
Sim, ele dará trabalho. Testou um flerte com a racionalidade na esperança de que isso funcionasse como uma absolvição do filho e como uma trégua. Inútil. O Bolsonaro golpista está de volta. É sua identidade possível. As instituições que se preparem.
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