Donald
Trump e Jair Bolsonaro, não são conservadores, os dois presidentes representam,
na verdade, as anomalias da modernidade
Independentemente
de seu resultado definitivo, a eleição presidencial americana já fez
significativas revelações sociológicas de implicações políticas sobre aquele
país e sobre o mundo que em torno dele gravita. Tanto nos países que têm com
ele relações econômicas quanto nos que têm com ele também relações de subserviência
ideológica, como o nosso deste momento.
O
eleitorado americano está hoje dividido entre os que seguem as referências
sociais tradicionais que distinguem democratas e republicanos e os que vacilam
e adotam orientações que negam aquilo que expressaria sua situação social.
Votaram em partido diverso do que corresponde “ao que socialmente são”. De
outro modo, isso tem acontecido aqui também: “ricos” votando em candidatos de
“pobres”, “pobres” votando em representantes da mentalidade dos “ricos”.
Não
se trata de que as sociedades estejam se tornando mais conservadoras, como se
tem alegado nas últimas horas em relação aos Estados Unidos. E como se tem dito
em relação ao Brasil desde a eleição do atual presidente. Nem Trump nem
Bolsonaro são conservadores. A tradição conservadora é uma tradição social e
política séria, centralizada na valorização da ordem, no temor de que o mundo
do indivíduo e o individualismo sobreponha-se a modos de viver e de pensar
referidos às concepções de pessoa e de comunidade e respectivos valores,
especialmente os da família e do familismo. Trump representa as anomalias da
modernidade. Bolsonaro também.
Após
o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo era o da certeza e da paz. No Brasil,
houve a euforia industrialista, a urbanização modernizadora, o incremento da
educação, a prosperidade, o crescimento da classe média. Hoje, qualquer um
percebe que vivemos numa era de incerteza, de oportunismo e conformismo, de
decadência, de patriotismo reduzido ao uso da cueca verde e amarela, de refúgio
nas religiões das igrejas de balcão, que deram a Deus uma cara de especulador
financeiro e o sepultaram no cofre da lucratividade sem produção nem trabalho.
O
surgimento de líderes políticos como Berlusconi, na Itália, Trump, nos EUA, e
Bolsonaro, no Brasil, mostra os riscos que correm diferentes países com a
entrega do poder a políticos bufões, com insuficiência de conhecimento do que é
o poder e do que é a democracia. Inventam inimigos fantasiosos para atemorizar
os ingênuos, tirar a democracia da linha e assegurar-lhes o poder pessoal que
põe em perigo a sociedade inteira.
Tudo
isso tem sentido à luz de transformações sociais que fazem da sociedade
cúmplice desses inimigos da ordem. Na avaliação da apuração dos votos
americanos, os especialistas tentaram analisar tendências com base no
pressuposto de que o voto nesse ou naquele candidato expressa tal ou qual
situação social. As categorias explicativas mais invocadas nas previsões eram
as costumeiras: negros, latinos, trabalhadores, suburbanos.
O
vínculo entre opção política e condição social passou a ser referência
explicativa já no século XIX, com a formulação da teoria das classes sociais e
do conflito de classes. A situação social de cada um e sua respectiva condição
econômica definiriam tipos determinados de mentalidade e diferentes concepções
do que é o mundo. Mas também a concepção secular do que deve ser o mundo. Em
outras palavras, a consciência social se modernizou e acrescentou ao atual e
presente de suas referências o possível do amanhã.
Os
analistas aparentemente se esquecem de que a teoria das classes sociais vem
acompanhada de uma teoria da alienação social. A alienação de todos, o
autoengano, o mascaramento das irracionalidades e das iniquidades sociais ou
sua deturpação tornaram-se mecanismo de assegurar a ordem necessária à vida
social moderna.
Os
mecanismos de contraposição autodefensiva contra o engano tem sido poucos e
quase sempre ineficazes. O surgimento dos instrumentos comunicacionais das
redes sociais, em vez de fortalecer a vítima, ampliou sua fragilidade. A mentira
tornou-se poderosa, e o medo manipulável acabou se tornando uma doença social
sem remédio.
A
sociedade foi alcançada por uma liquescência, para recorrer à formulação do
sociólogo Zygmunt Bauman. Ela atenua a referência e a determinação das
condições sociais orientadoras da mentalidade política e do comportamento
eleitoral em todas as partes. Nos EUA, em muitos lugares em que os negros
votavam ideologicamente como negros, votaram como brancos. Onde se esperava que
a frágil categoria diferencial de latinos definisse o perfil de um voto latino,
os latinos votaram como americanos.
Aqui,
isso também aconteceu largamente nas eleições de 2018. De dedo no gatilho, John
Wayne venceu o pleito e roubou-nos a identidade.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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