Ao
acusar regularmente Joe Biden e os democratas de quererem “destruir tudo o que
amamos e estimamos”, Trump preparou o terreno para deslegitimiar o outro lado e
contestar, sem provas, o resultado eleitoral
“A esquerda radical está empenhada em destruir
tudo o que amamos e estimamos”, disse o presidente Donald Trump num comício na
Flórida, em 12 de outubro. O atual ciclo eleitoral nos EUA é mais um exemplo
gritante desse tipo de retórica excludente, na qual só um lado se vê legitimado
a vencer. É um jogo de soma zero que ameaça a democracia. As próximas semanas
serão decisivas.
Trump
passou a campanha usando esse tipo de retórica. Biden e os democratas “vão
matar nossos empregos, desmantelar nossa polícia, dissolver nossas fronteiras,
libertar criminosos estrangeiros, elevar nossos impostos, confiscar nossas
armas (...), destruir nossos subúrbios e tirar Deus do espaço público”, tuitou
ele em outubro.
O
presidente costuma usar uma linguagem hiperbólica. Quase tudo o que ele faz é
“tremendous”. O que outros fazem ou fizeram é um “disaster”. É um mundo
anedótico em preto ou branco. Mas, à parte o aumento de impostos (que parece
inevitável devido ao aumento dos gastos com a epidemia), nada do que ele tuitou
constava do programa do democrata Joe Biden, que é basicamente um moderado, que
seria um centrista em qualquer país europeu. O objetivo desse tipo de discurso
é incutir a suspeita, o medo, o ódio ao outro.
A
narrativa por trás disso é perigosamente simples. O outro busca destruir o que
somos (algo propositadamente pouco definido). Logo, o outro não pode chegar ao
poder, afinal ninguém quer ser destruído. O passo seguinte é que vale tudo para
impedir a vitória do outro, como Trump está agora tentando fazer. Um passo
ulterior é que, se o outro não pode vencer, porque ele precisa existir? E,
pronto, estamos no terreno do autoritarismo. O fascismo italiano via a oposição
como desnecessária, já que ele era o portador do bem comum.
Um
dos princípios da democracia é a alternância de poder. Se eu não ganhar desta
vez, ganharei na próxima ou na seguinte. Essa alternância permite refinar a
política com o tempo, como numa concorrência normal, quando um produto predomina
até que apareça outro melhor. Isso estimula, ou deveria estimular, os partidos
a oferecerem candidatos e políticas melhores. Quem não o fizer acaba punido
pelo eleitor. A alternância estimula ainda a colaboração. Se um partido ficar
desfazendo tudo o que o outro fez no governo anterior, não se avança.
O
discurso da exclusão, porém, visa deslegitimar o concorrente. O desfecho, caso
o eleitor opte pelo outro, será apocalíptico. Não haverá retorno possível. É
como se a propaganda de um sabão em pó, em vez de mostrar como ele lava melhor,
acusasse o concorrente de destruir a roupa, a máquina de lavar. Sem provas.
Não
foi Trump que introduziu esse discurso no “mainstream” da política americana.
Já em 1996, no livro “A Política da Negação”. Michael Milburn e Sheree Conrad,
professores de Psicologia Social na Universidade de Massachusetts,
identificaram a ascensão dessa retórica extremista na direita religiosa
americana, em figuras como Pat Buchanan e Newt Gingritch. Mas Trump levou essa
negação do outro à Casa Branca, ao topo do establishment americano. Ninguém
estimulou e explorou o medo e o ódio como ele.
Esse
é um discurso comum a qualquer extremismo. Hugo Chávez passou anos dizendo que
a oposição de direita destruiria a Venezuela caso voltasse ao poder. Seu sucessor,
Nicolás Maduro, repete isso regularmente. O resultado é o impedimento de a
oposição vencer, por quaisquer meios necessário. O fim da alternância levou o
país à ruína.
No
Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se refere à oposição em termos similares.
“Nós temos que acabar com aqueles que querem destruir a família brasileira”,
disse em entrevista ao Valor,
ainda em dezembro de 2017, como se houvesse um único modelo de família
brasileira do qual ele seria o porta-voz. No início deste ano, afirmou: “Não dê
chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais,
como se quisessem o bem do Brasil.” Outra expressão comum no discurso da
negação é se proclamar do lado dos “homens de bem”, o que automaticamente
coloca o outro fora do campo do bem.
Essa
visão revela uma concepção quase religiosa do governo, como se fosse
onipotente. Isso é, obviamente, uma falácia. Tudo que um governo faz, dentro
das regras do jogo, pode ser desfeito. É improvável, por exemplo que qualquer
governo democrático conseguisse fazer nos EUA os propósitos que Trump atribuiu
a Biden. Haveria oposição do Legislativo, do Judiciário, da sociedade civil. O
próprio Trump sentiu essa impotência na pele. O muro que ele prometeu construir
na fronteira com o México, pago pelos mexicanos, nunca saiu do papel. E
mudanças que ele fez nas normas ambientais serão agora desfeitas por Biden, por
decisão dos eleitores americanos. Assim é o jogo da alternância.
Mas
a política da negação tem um forte apelo populista. Ela identifica um culpado,
o outro, ao qual pode ser atribuída a responsabilidade por quase qualquer
mazela. Tanto na Venezuela chavista como nos EUA trumpiano, a culpa é sempre do
outro. E, mesmo quando não há uma culpa, como no caso do surgimento de um
vírus, é possível atribuí-la, como Trump faz com a China.
O
resultado dessa campanha de deslegitimação e descrédito é que dois terços dos
americanos, segundo pesquisa divulgada nesta semana, acreditam que a eleição
não foi justa nem livre. Trump contesta o resultado eleitoral no Estado de
Nevada, onde as autoridades estaduais, republicanas como Trump, negam qualquer
irregularidade.
E,
por ora, ele conseguiu que o Partido Republicano o apoiasse nessa aventura
política perigosa. Apenas uns poucos senadores e governadores republicanos se
dissociaram. “Estou estarrecido de ouvir as acusações sem evidências vindas do
presidente, da sua equipe e de muitas outras autoridades republicanas eleitas
em Washington”, disse o governador republicano de Massachusetts, Charlie Baker.
O que distingue os EUA da maioria dos países é que há 200 anos os americanos elegem o seu presidente, e o vencedor, seja ele da situação ou oposição, assume. Essa estabilidade certamente ajudou os EUA a se tornarem o que são hoje. Nas próximas semanas ficaremos sabendo se essa tradição continuará.
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