sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Humberto Saccomandi - Trump leva a negação do outro ao limite

- Valor Econômico

Ao acusar regularmente Joe Biden e os democratas de quererem “destruir tudo o que amamos e estimamos”, Trump preparou o terreno para deslegitimiar o outro lado e contestar, sem provas, o resultado eleitoral

 “A esquerda radical está empenhada em destruir tudo o que amamos e estimamos”, disse o presidente Donald Trump num comício na Flórida, em 12 de outubro. O atual ciclo eleitoral nos EUA é mais um exemplo gritante desse tipo de retórica excludente, na qual só um lado se vê legitimado a vencer. É um jogo de soma zero que ameaça a democracia. As próximas semanas serão decisivas.

Trump passou a campanha usando esse tipo de retórica. Biden e os democratas “vão matar nossos empregos, desmantelar nossa polícia, dissolver nossas fronteiras, libertar criminosos estrangeiros, elevar nossos impostos, confiscar nossas armas (...), destruir nossos subúrbios e tirar Deus do espaço público”, tuitou ele em outubro.

O presidente costuma usar uma linguagem hiperbólica. Quase tudo o que ele faz é “tremendous”. O que outros fazem ou fizeram é um “disaster”. É um mundo anedótico em preto ou branco. Mas, à parte o aumento de impostos (que parece inevitável devido ao aumento dos gastos com a epidemia), nada do que ele tuitou constava do programa do democrata Joe Biden, que é basicamente um moderado, que seria um centrista em qualquer país europeu. O objetivo desse tipo de discurso é incutir a suspeita, o medo, o ódio ao outro.

A narrativa por trás disso é perigosamente simples. O outro busca destruir o que somos (algo propositadamente pouco definido). Logo, o outro não pode chegar ao poder, afinal ninguém quer ser destruído. O passo seguinte é que vale tudo para impedir a vitória do outro, como Trump está agora tentando fazer. Um passo ulterior é que, se o outro não pode vencer, porque ele precisa existir? E, pronto, estamos no terreno do autoritarismo. O fascismo italiano via a oposição como desnecessária, já que ele era o portador do bem comum.

Um dos princípios da democracia é a alternância de poder. Se eu não ganhar desta vez, ganharei na próxima ou na seguinte. Essa alternância permite refinar a política com o tempo, como numa concorrência normal, quando um produto predomina até que apareça outro melhor. Isso estimula, ou deveria estimular, os partidos a oferecerem candidatos e políticas melhores. Quem não o fizer acaba punido pelo eleitor. A alternância estimula ainda a colaboração. Se um partido ficar desfazendo tudo o que o outro fez no governo anterior, não se avança.

O discurso da exclusão, porém, visa deslegitimar o concorrente. O desfecho, caso o eleitor opte pelo outro, será apocalíptico. Não haverá retorno possível. É como se a propaganda de um sabão em pó, em vez de mostrar como ele lava melhor, acusasse o concorrente de destruir a roupa, a máquina de lavar. Sem provas.

Não foi Trump que introduziu esse discurso no “mainstream” da política americana. Já em 1996, no livro “A Política da Negação”. Michael Milburn e Sheree Conrad, professores de Psicologia Social na Universidade de Massachusetts, identificaram a ascensão dessa retórica extremista na direita religiosa americana, em figuras como Pat Buchanan e Newt Gingritch. Mas Trump levou essa negação do outro à Casa Branca, ao topo do establishment americano. Ninguém estimulou e explorou o medo e o ódio como ele.

Esse é um discurso comum a qualquer extremismo. Hugo Chávez passou anos dizendo que a oposição de direita destruiria a Venezuela caso voltasse ao poder. Seu sucessor, Nicolás Maduro, repete isso regularmente. O resultado é o impedimento de a oposição vencer, por quaisquer meios necessário. O fim da alternância levou o país à ruína.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se refere à oposição em termos similares. “Nós temos que acabar com aqueles que querem destruir a família brasileira”, disse em entrevista ao Valor, ainda em dezembro de 2017, como se houvesse um único modelo de família brasileira do qual ele seria o porta-voz. No início deste ano, afirmou: “Não dê chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais, como se quisessem o bem do Brasil.” Outra expressão comum no discurso da negação é se proclamar do lado dos “homens de bem”, o que automaticamente coloca o outro fora do campo do bem.

Essa visão revela uma concepção quase religiosa do governo, como se fosse onipotente. Isso é, obviamente, uma falácia. Tudo que um governo faz, dentro das regras do jogo, pode ser desfeito. É improvável, por exemplo que qualquer governo democrático conseguisse fazer nos EUA os propósitos que Trump atribuiu a Biden. Haveria oposição do Legislativo, do Judiciário, da sociedade civil. O próprio Trump sentiu essa impotência na pele. O muro que ele prometeu construir na fronteira com o México, pago pelos mexicanos, nunca saiu do papel. E mudanças que ele fez nas normas ambientais serão agora desfeitas por Biden, por decisão dos eleitores americanos. Assim é o jogo da alternância.

Mas a política da negação tem um forte apelo populista. Ela identifica um culpado, o outro, ao qual pode ser atribuída a responsabilidade por quase qualquer mazela. Tanto na Venezuela chavista como nos EUA trumpiano, a culpa é sempre do outro. E, mesmo quando não há uma culpa, como no caso do surgimento de um vírus, é possível atribuí-la, como Trump faz com a China.

O resultado dessa campanha de deslegitimação e descrédito é que dois terços dos americanos, segundo pesquisa divulgada nesta semana, acreditam que a eleição não foi justa nem livre. Trump contesta o resultado eleitoral no Estado de Nevada, onde as autoridades estaduais, republicanas como Trump, negam qualquer irregularidade.

E, por ora, ele conseguiu que o Partido Republicano o apoiasse nessa aventura política perigosa. Apenas uns poucos senadores e governadores republicanos se dissociaram. “Estou estarrecido de ouvir as acusações sem evidências vindas do presidente, da sua equipe e de muitas outras autoridades republicanas eleitas em Washington”, disse o governador republicano de Massachusetts, Charlie Baker.

O que distingue os EUA da maioria dos países é que há 200 anos os americanos elegem o seu presidente, e o vencedor, seja ele da situação ou oposição, assume. Essa estabilidade certamente ajudou os EUA a se tornarem o que são hoje. Nas próximas semanas ficaremos sabendo se essa tradição continuará.

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