Se
foi possível nos EUA, por que não aqui, com personagens tão caricatos?
A
derrota de Donald Trump não só tranquilizou, como trouxe alento a muitos países
no mundo. A expressão de Francis Fukuyama referindo-se ao exorcismo para
definir a vitória de Joe Biden é muito precisa. Parece que tudo volta
lentamente a um curso mais racional, menos imprevisível. O Acordo de Paris
volta a ser um instrumento potencialmente eficaz para combater o aquecimento
global. Angela Merkel saudou a volta de uma aliança transatlântica e suas
possibilidades.
Alguns
países se recusam a reconhecer a derrota de Trump. China, Rússia e Brasil estão
entre eles, por motivos diferentes, creio. Na linguagem diplomática o atraso é
uma mostra inequívoca de insatisfação com o resultado. Tanto a China quanto a
Rússia contavam com o avanço do processo de decadência americana, encarnado por
Trump e seu isolacionismo.
O
caso brasileiro é de orfandade. Bolsonaro perdeu seu grande inspirador. E a
política externa, comandada por Ernesto Araújo, não tem mais o que considera o
líder do Ocidente que iria fazer prevalecer os valores morais sobre o
materialismo reinante. Não se sabe de onde se trouxe uma figura laranja, cheia
de problemas com o Fisco, rude com as mulheres, para o cargo de guardião do
cristianismo.
A
pior das ilusões foi a expectativa provinciana de Bolsonaro se tornar amigo de
Trump. Este sabe que nações não têm amigos e está escorado no slogan “America
first”. Objetivamente, fez de Bolsonaro um fiel seguidor, pronto para aprovar
tudo em nome de uma pretensa amizade pessoal, ali onde estavam em jogo
interesses nacionais. A exportação do aço foi taxada, Bolsonaro dilatou o prazo
para a importação do etanol e colocou sua diplomacia num ato de campanha
eleitoral na fronteira com a Venezuela, quando da visita de Mike Pompeo. Para
dar mais uns votinhos a Trump na Flórida. O Brasil armou o circo que Pompeo
precisava.
Agora
tudo acabou. Se há esperanças na Europa, aqui há apreensão. É muito difícil
Bolsonaro adaptar-se à posição ambiental de Biden. Para Bolsonaro será mais uma
forma de adotar uma falsa postura nacionalista e não interromper o processo de
destruição da Amazônia, o único caminho que vê para o progresso, nos termos em
que o entendem as pessoas que ficaram congeladas nos anos 70 do século passado.
Logo
depois da eleição de Biden Bolsonaro pensa em lançar um marco regulatório das
ONGs. Na verdade, é uma promessa antiga, pois afirmou que iria acabar com o
ativismo no Brasil. Trata-se de algo inconstitucional, que deve encontrar
resistência no Congresso e no Supremo.
Além
disso, circula um documento no Conselho da Amazônia dizendo que chineses e
europeus têm planos para levar a água de lá. Não se sabe como o fariam sem o
consentimento brasileiro É mais uma história para fantasiar uma luta
nacionalista e ampliar o processo de destruição em nome dos interesses do
Brasil.
No
passado era o minério e agora, a água. Não creio que elaborem essas teorias de
má-fé. Lembro-me, no passado, de já se ter discutido a possibilidade de
exportação de água. Foi uma discussão baseada no Canadá, também exportador. Não
foi adiante. Era uma exportação controlada, mas não se demonstrou a
viabilidade.
Se
os chineses podem levar nossa água, por que não nosso açaí, nossa castanha e
todos os outros recurso naturais? Essa formulação alucinada só servirá para
aumentar o isolamento brasileiro. Sem o deus laranja da nossa diplomacia, com
Bolsonaro atuando de forma estúpida num contexto externo delicado e caminhando
para uma crise interna sem precedentes, o grande exorcismo ainda não atingiu o
Brasil. O mundo ficou mais inteligível e racional, mas os espíritos secundários
que baixaram por aqui ainda não permitem que nos livremos de seus delírios
maníacos. Uma coisa nos anima: se foi possível em escala maior, por que não
aqui, com personagens tão caricatos?
O
último pronunciamento de Bolsonaro nos indica o nível de insanidade a que
chegou o governo brasileiro. Ele insinuou um conflito armado com os EUA ao
dizer que vai usar a saliva, mas quando acabar restará a pólvora.
Uma
forma de desestimulá-lo é informar-lhe que a pólvora foi descoberta pelos
chineses – ele certamente vai duvidar desse instrumento, como duvida da vacina
contra o coronavírus. Outra é apelar para sua generosidade. Os EUA acabam de
sair de uma eleição difícil, combatem como nós uma pandemia, não é justo
amedrontá-los com um conflito armado. Eles seriam jogados na máquina do tempo,
sentiriam no contato com nossos equipamentos como se estivessem entrando de
novo na 2.ª Guerra Mundial. Talvez valesse mais a pena fazer o general Mourão e
alguns militares reformados que jogam vôlei no Posto 6, em Copacabana, invadir
a Filadélfia e reverter o resultado eleitoral. Isso traria menos conflito e bom
material para programas humorísticos mundo afora.
Na
verdade, o governo Bolsonaro seria risível se não se tratasse de uma pandemia
que mata tanta gente e de uma política ambiental que reduz as chances de vida
no planeta. Por isso se tornou uma tragicomédia, cujo prazo de duração até 2022
é muito doloroso.
*Jornalista
Um comentário:
Gabeira sempre na Mosca; sem afrontar os aloprados.
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