Planalto
sabe que a eleição de Biden tornará descaso com a Amazônia mais custoso
Ainda
é cedo para vislumbrar com nitidez todos os complexos desdobramentos da vitória
de Joe Biden. Mas, mundo afora, governos de nações democráticas festejam,
aliviados, a perspectiva de voltar a contar, em Washington, com um presidente
que possa restaurar o papel crucial dos EUA na cooperação multilateral que se
faz necessária para a boa governança do planeta. Do combate à pandemia ao
aquecimento global. Dos esforços concertados de recuperação da economia mundial
ao controle eficaz da proliferação nuclear.
Em
Brasília, contudo, o governo não esconde sua contrariedade. Não bastasse já se
ter permitido indecoroso alinhamento explícito ao candidato republicano durante
a campanha presidencial nos EUA, o Planalto fechou-se em copas. Impôs ao
governo silêncio fechado sobre o resultado da eleição. E proibiu que órgãos
governamentais divulguem projeções econômicas que levem em conta a vitória do
candidato democrata. Até o início da tarde de ontem, Bolsonaro ainda não se
dignara a reconhecer a vitória de Joe Biden. Mais constrangedor, impossível.
Não
há como subestimar as dificuldades que, tudo indica, o Planalto continuará a
enfrentar para lidar com o desfecho da eleição americana. É mais do que sabido
que, por anos, Bolsonaro viu em Trump o modelo a seguir, copiando-lhe inclusive
a forma peculiar com que transformou o dia a dia do seu governo num
interminável reality
show, focado no acirramento da polarização política.
Ao
macaquear Trump, Bolsonaro viu-se, com frequência, mais à vontade para insistir
em posições indefensáveis que desavisadamente adotara. Sem ir mais longe, basta
ter em conta quão mais difícil lhe teria sido se agarrar ao negacionismo e ao
charlatanismo, diante do avassalador avanço da pandemia, se, nesse papel, não
se percebesse em fantasioso dueto com Donald Trump.
A
criação, por Biden, de uma força-tarefa de combate à Covid-19, que voltará a
pautar a política de saúde pública americana por recomendações científicas,
prenuncia que a postura obscurantista que Bolsonaro se permitiu adotar no
enfrentamento da pandemia está fadada a se tornar cada vez mais isolada e
desgastante.
O
Planalto bem sabe, também, que a eleição de Biden tornará o desajuizado descaso
do governo com a devastação da Amazônia bem mais custoso do que já vem sendo.
Ao desgaste que essa postura irresponsável vem trazendo às relações do Brasil
com a União Europeia, deverão se somar inevitáveis atritos com os EUA,
fomentados por uma aliança tácita — à primeira vista estranha, por isso mesmo
temível — da ala ambientalista do Partido Democrata com o poderoso lobby
agrícola americano.
O
que está em jogo é o promissor projeto de expansão das exportações brasileiras
de produtos agropecuários. E, como já perceberam os segmentos mais lúcidos do
agronegócio no país, para que possa fazer face às pressões conjuntas de Estados
Unidos e Europa por políticas mais consequentes de preservação da Amazônia, o
governo terá de dar demonstrações inequívocas de que sua postura mudou. E de
que, na condução da política ambiental, já não haverá mais espaço para figuras
como Ricardo Salles.
Com
o Itamaraty sob a égide das pregações caricatas de Ernesto Araújo contra
instituições multilaterais, o governo encontra-se completamente desequipado
para lidar com a revitalização do multilateralismo que a eleição de Joe Biden
promete. A defesa eficaz dos interesses brasileiros nas negociações que deverão
ter lugar nessas instituições depende de um esforço abrangente de retripulação
do Ministério das Relações Exteriores, que Bolsonaro dificilmente estará
disposto a patrocinar.
Sem
Trump, Bolsonaro se verá privado de uma caixa de ressonância importante para o
discurso inconsequente e amalucado que se permitiu manter em ampla gama de
questões. Terá menos espaço para demagogia e populismo. E estará bem menos à
vontade para dar vazão a sua irrefreável fanfarronice mitômana. Mas não se iludam. Mesmo
sem Trump, Bolsonaro não deixará de ser o que sempre foi.
*Economista,
doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
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