Na
eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos
jovens
Vendo as imagens do povo dançando nas praças, festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país numa guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava acontecendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia. Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, haviam rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.
Oito
anos depois, sem ter conseguido fazer tudo o que prometia, era normal que Obama
não conseguisse fazer seu sucessor. Mas a eleição de Trump não foi uma simples
alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela
eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam
por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte
corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam
ter sido postos à margem da sociedade americana e subitamente mostraram suas
garras. Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência
descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o
desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o
racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam se
tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, era o ataque às instituições
mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema
eleitoral.
A
vitória de Biden mostra que nem tudo está perdido, mas deixa um gosto amargo,
porque a “onda azul” foi menor do que se esperava e Biden provavelmente terá
ainda menos condições de cumprir o que promete do que Obama, tanto pela
oposição sistemática que receberá como por um contexto internacional menos
favorável, com a ascensão inevitável da China. A democracia americana
sobreviverá, mas longe do vigor que a era de Obama parecia prenunciar. A
História americana recente é semelhante à de muitos outros países, incluído o
Brasil, de surgimento de lideranças radicais que conseguem forte apoio popular
e partem para o assalto às instituições democráticas, e da dificuldade dos
partidos moderados de prevalecerem. O que explica a força desses movimentos
antidemocráticos e a fragilidade das democracias?
A
pergunta, na verdade, deve ser posta ao contrário, porque a democracia é uma
flor frágil, e é quase um milagre que tenha sobrevivido em tantos lugares até
aqui. Em livro recente, O Ocaso da Democracia, a jornalista americana Anne
Applebaum, casada com Radosław Sikorski, também jornalista e político de
destaque dos governos democráticos da Polônia, conta a história da conversão à
extrema direita de muitos de seus amigos e colegas que, como os dois, haviam se
engajado na oposição ao stalinismo e na esperança de uma nova era democrática
para a Europa e os Estados Unidos, e viram em seu lugar surgir os regimes de
Jarosław Kaczynski na Polônia, Viktor Orbán na Hungria e Donald Trump nos
Estados Unidos. Cada história é diferente, combinando em diversas doses
oportunismo, ambição e impaciência com a lentidão dos regimes democráticos em
produzir os resultados esperados. Mas existem problemas mais gerais. A ideia de
que a democracia, combinada com a valorização do mérito e da economia aberta e
competitiva, é a melhor forma de governo perde força quando ela se torna
disfuncional, com muitas pessoas se sentindo excluídas de seus benefícios. E a
democracia não consegue dar respostas aos anseios das pessoas por identidade
pessoal, comunitária ou nacional. Ao se opor ao surgimento da extrema direita,
a oposição liberal, nos Estados Unidos e outras partes, ao invés de tentar
reconstruir o consenso nacional ao redor dos valores democráticos e do
interesse comum, muitas vezes dá prioridade às políticas de identidade de
grupos minoritários e setores marginalizados e discriminados, reduzindo ainda
mais o espaço para a democracia consensual.
A
democracia, para sobreviver, precisa de lideranças capazes de interpretar o
interesse geral, de instituições capazes de resistir aos assaltos dos tiranos
de plantão, e de uma população capaz de entender que a política é mais do que a
expressão de suas ansiedades e frustrações. Na eleição americana, o dado mais
esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos eleitores mais jovens.
Anne
Applebaum também termina seu livro falando de uma nova geração que busca novos
caminhos, além das políticas exauridas da democracia complacente e da extrema
direita enlouquecida. O futuro é incerto, mas há esperança.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
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