Em
termos de mecânica democrática, o Brasil dá de 7x1 nos EUA; nossa urna
eletrônica é simples, segura e rápida na apuração
Aguardamos
ansiosos o início da apuração americana na noite desta terça-feira (3). Muitos
brasileiros torcem por Biden, que as pesquisas dão como favorito. Só não abra o
champanhe ainda. Ninguém ganha eleição de véspera. E, além disso, o gás já vai
ter acabado quando o resultado definitivo for finalmente computado e
oficializado.
Em
termos de mecânica democrática, o Brasil dá de 7x1 nos EUA. Nossa urna
eletrônica é simples, segura e rápida na apuração. A Justiça Eleitoral
garante que a organização e contagem dos votos fique acima das disputas
políticas.
Assim
que se contabilizam os resultados, resta aos candidatos apenas aceitar. Bolsonaro
bem que tentou atacá-las, mas até agora o populismo brasileiro foi inócuo
contra a confiança nas urnas.
Nos
EUA, a coisa é diferente. O sistema eleitoral descentralizado, com regras do
século 18 e que fica nas mãos da política local é prato cheio para o populismo.
As dificuldades impostas para se registrar como eleitor e o fato de se ter que
votar em dia de semana —sem justificar a falta no trabalho— dificultam o voto
para os mais pobres (não raro, negros) em muitos estados.
A
cédula em papel torna tudo muito mais demorado, sem falar na maior
probabilidade de erro na hora de preenchê-las. O resultado é menos abrangente,
menos representativo e mais sujeito a erros.
Até
o nosso voto obrigatório cumpre uma função positiva: temos participação
altíssima da população para padrões globais (lembrando que a “punição” para
quem não vota é quase inexistente, uma multa de poucos reais). Não duvido que a
ideia da obrigatoriedade, somada ao bom funcionamento dos dias de votação,
serviu para incutir uma cultura de voto.
O
domingo de eleição tem uma solenidade própria, e nosso ritual cívico não pesa
quase nada sobre a população. E enfraquece o peso do eleitorado mais
fanatizado, que faria questão de votar com ou sem obrigatoriedade e seria mais
disposto a aceitar os arroubos populistas do seu político de estimação.
A
relutância faceira de Trump em dizer se aceitaria ou não uma derrota nas urnas
desmoraliza o sistema. Se no topo da hierarquia reside um desprezo tão aberto
pelas regras que garantem seu funcionamento, o que dizer das engrenagens
humildes que o operam no dia a dia, compostas também de pessoas dotadas de
ideologia e ambições pessoais?
As
imperfeições do sistema eleitoral nem de longe justificam sua atitude, mas
alimentam o ceticismo generalizado de que ele depende.
Zonas
cinzentas são terreno fértil para o populismo. Há alguma falha? Então tudo pode
ser melado. Os republicanos querem até mesmo invalidar a totalidade dos votos
por correio. Tudo
que puder ser judicializado, será. Em alguns casos, a tática pode
funcionar.
Mesmo
que Biden vença, se o resultado das urnas lhe der uma vantagem muito magrinha,
o presidente fará de tudo para melar o jogo. Especificamente, se Trump ganhar
no voto presencial, mas a soma com os votos por correio der a vitória a Biden,
ninguém sabe o que acontecerá; apenas que a briga será muito suja.
Apesar
de tudo, acredito na resiliência da democracia americana. Se Biden vencer nos
votos de delegados, não há manobra judicial que mantenha Trump no poder. Há de
haver algum senso cívico acima de paixões faccionalistas no Judiciário. Mas ele
não é eterno.
Por
isso mesmo a vitória de Biden seria importante. Ele não encanta muita gente,
mas é o que o país precisa: decência no debate público, espírito cívico. Nem a
democracia mais antiga do mundo aguenta os ataques histriônicos de um líder
populista indefinidamente.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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