Jair
Bolsonaro é um autocrata em busca de brechas
Não
dará em coisa alguma (agora). Mas importa examinar o padrão; sobretudo se o
leitor estiver entre os que acreditam que água mole em pedra dura tanto bate
até que fura. Não sendo irrelevante considerar que a pedra talvez não seja tão
dura; e que a água tenda a endurecer depois, por exemplo, de uma reeleição.
O
padrão: todo governo de natureza autoritária, tanto mais se com dificuldades
(por razão de incompetência) em tocar agenda, solta balões de ensaio para
testar campo a uma nova Constituição. Tem sido assim no Brasil. Um país de
cultura constitucional inexistente, vazio propício a que governantes
populistas, com compreensão utilitária da República, especulem frequentemente
sobre um processo constituinte que resultasse em conjunto de leis a lhes facilitar
a vida.
O
faro oportunista-personalista de que a ocasião possa fazer Constituição deriva
da deturpação antiliberal segundo a qual Constituição seria estorvo. O espírito
do tempo é autoritário, empecilho também sendo a democracia representativa. A
mentalidade, patrimonialista, donde a busca por legislação desamarrada da
impessoalidade republicana.
Jair
Bolsonaro é um autocrata em busca de brechas. O populismo de oportunidades aí
só está, em fase influente, porque houve Fabrício Queiroz e Alexandre de Moraes
(com seu inquérito inconstitucional) para desacelerar o motor golpista. (Que
voltará a girar.) Só por isso Ricardo Barros, o proponente de turno da
Constituinte, é líder do governo na Câmara. Ele é a busca por brechas ora
possível ao presidente — e, diante da baixa adesão à sua ideia de nova
Constituição, sempre poderá recorrer ao “falava por mim quando a apresentei”.
Não
faltam governistas, da cepa dos sectários, que tenham manifestado apetite por
uma Constituição para chamar de sua. Alguns mesmo se oferecendo, desde o alto
de seu patriotismo, para escrevê-la. Convém avaliar o que significará um
governo que reúna tantos desses, obra certamente não do acaso. Barros não está
entre eles. Não é um golpista, parece-me. Sua campanha, no entanto, serve ao
golpismo. Os práticos não raro servem ao golpismo.
O
deputado tem um trabalho a cumprir e motivos para estar frustrado. As coisas
não andam. A culpa, porém, não é da Constituição. Não é a Carta o problema,
embora problemas, muitos, tenha; problema maior sendo o desrespeito ao que em
suas páginas vai escrito — exemplo degenerado e degenerador oferecido, antes de
tudo, pelo próprio Supremo, agora sob a gestão criativa de Luiz Fux, e que se
expressa, para ficarmos apenas no presente, na forma sem vergonha como o
presidente do Senado urde um golpe constitucional que lhe permitiria concorrer
à reeleição.
Escrevi
que a Constituição tem problemas. Inúmeros. Não faltam, entretanto, mecanismos
para que seja reformada. O valor que se dá ao texto constitucional assentado
pelo tempo, assentando também um imaginário constitucional entre nós, não
decorre de sua intocabilidade, mas da atividade do legislador que o aprimora.
Não quero dizer a Barros que vá trabalhar; mas, afinal, é isso. Sua gastura é
produto de falso problema. Um problema real: o governo para o qual articula é
ruim de serviço. Ele sonha com uma Constituição em que o senso de dever tenha
peso; e é evidente que esse desejo se opõe ao que imagina ser excesso de
direitos da Carta atual. É um clichê frequente e preguiçoso. A recente reforma
da Previdência mexeu em direitos. Nada impede que se toque em direitos
constitucionalmente previstos. Para tanto, será necessário fazer política,
debater, negociar — convencer. Ponto a ponto.
Não
são poucos, contudo, os que, no ímpeto por (escrever) Constituição que os vista
como reis para o poder, dão também vazão ao desprezo pelo exercício político.
Não é o caso de Barros, homem da costura. Mas é preciso ser politicamente
obtuso, insensível mesmo socialmente, para supor que um tal processo
constituinte, disparado em meio a uma pandemia ou sob o duradouro eco dela,
pudesse vir e prosperar com o norte da supressão de direitos à baciada. O que
vai formalmente deflagrado no Chile, e que serviu de gás para o balão de ensaio
do deputado, avança no sentido oposto.
A
população chilena quer se livrar do entulho pinochetista para ter uma
Constituição que lhe assegure mais direitos — uma Constituição, pois, parecida
com a brasileira. Pode não dar certo; é até provável que não dê, considerados
os calores do ressentimento que animam o pleito. Mas a reivindicação é
legítima. Por uma Constituição, de partida, erguida para e pela democracia;
como a nossa, produto da redemocratização — incontornavelmente com respostas
(algumas talvez já anacrônicas) aos traumas dos anos de ditadura.
Melhor deixá-la imperfeita, com as marcas de suas circunstâncias — como está. Constituição não dá em árvore. Tampouco é obra do Espírito Santo. São as pessoas que a fazem. Gente de Ricardo Barros para baixo. Se a Carta que temos tem defeitos, e tem, imagine uma de ocasião feita por essa galera. Hein? Melhor deixar quieto.
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