No
Brasil, o governo está obcecado com a cor do gato. Se o gato é capaz de caçar
ratos, isso não interessa
O
professor Yu Yongding observou, recentemente no Valor (“A estratégia de
‘dupla circulação’ da China, 30/09/2020) que “a politica de dissociações e
ações do governo Trump deixaram a China sem escolhas a não ser dobrar a ligação
do crescimento econômico com a demanda doméstica, para garantir uma posição
sólida nas cadeias globais de valor”. Eis um raciocínio. Por outro lado, ainda
na chamada “geoeconomia”, o prestigiado professor Lanxin Xiang, autor de um
verdadeiro best seller lançado recentemente (“The Quest for Legitimacy in
Chinese Politics”, Routledge) tem sintetizado um grande debate que ocorre nos
círculos intelectuais chineses sobre o abandono, por Xi Jinping, do conselho
original de Deng Xiaoping de que a China deveria esperar seu tempo e manter um
perfil discreto.
O
que determinadas discussões acadêmicas sobre a China acabam não levando em
consideração é que Deng Xiaoping, um homem capaz de apontar o dedo no horizonte
como poucos no século XX, não poderia prever duas ordens de acontecimentos,
inter-relacionados: 1- A financeirização das economias ocidentais tornou muito
mais instável a instabilidade sugerida por Hyman Minsky, o que suscitou ameaças
à legitimidade das chamadas “democracias liberais” e 2- A China simplesmente
aproveitou as brechas históricas abertas diante de si para avançar em
velocidade máxima, tanto nos caminhos das cadeias globais de valor quanto nos
territórios econômicos externos.
Os
chineses partem para a execução de seu 14º Plano Quinquenal, em meio a
instabilidades e incertezas, apetrechados dos recursos institucionais e
políticos para arrostar as ameaças à paz sonhada por Deng para o
desenvolvimento do país. O que poderia ocorrer somente em 2049 foi antecipado
em quase 30 anos.
Os
“neo-institucionalistas” Douglas North, Daron Acemoglu e outros, insistiram em
previsões equivocadas a respeito do destino da China ao ignorar as peculiaridades
do arranjo institucional construído pacientemente depois das reformas iniciadas
no crepúsculo dos anos 70. Hoje, essas instituições peculiares se preparam para
mais uma resposta que pode botar de queixo-caído os profetas da desgraça.
O
novo plano quinquenal nos lembra muito os chamados 50 anos em 5 de nosso JK. O
martelo foi batido na semana passada durante reunião do Comitê Central do
Partido Comunista da China onde detalhou-se dois níveis de ação incluindo o
próprio 14º Plano Quinquenal e os objetivos mais estratégicos a serem
alcançados até o ano de 2035.
É
interessante observar que os portentosos números proclamados no anúncio dos
planos quinquenais anteriores foram abandonados, à exceção da meta almejada
para a renda per capita de US$ 20 mil em 2035 - o que significa dobrar a atual.
A não proclamação de grandes números não indica a perda de critério, mas a
ênfase em conceitos. O conceito-chave é a chamada “Estratégia de Dupla
Circulação”.
A
“dupla circulação” está definida em dois âmbitos interrelacionados. A
“circulação interna” busca a consolidação de um mercado interno, cuja classe
média passaria dos atuais 400 milhões para a casa dos 700 milhões em 2025. A
manutenção da política de aumentos médios do salário mínimo será mantida de
forma a articular tal política com o relaxamento das restrições impostas pelo
sistema Hukou de migração interna dos trabalhadores.
Os
dados disponibilizados pelo Global Wage Report 2018-2019 patrocinado pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que o salário mínimo chinês
cresceu 280% entre 2004 e 2018. Entre as restrições a serem levantadas estão o
acesso a serviços sociais. Enquanto o Brasil se entrega ao salário por hora e à
desproteção social, os documentos governamentais do 14º Plano Quinquenal
enfatizam a “Nova Urbanização”, cuja centralidade é a construção de poderosos
esquemas de seguridade social, cobertura médica, educacional, cultural e
elevação da produtividade do trabalho na agricultura - no rumo da construção de
soberania alimentar.
No
âmbito da segunda circulação, a “circulação externa” estão os dispositivos
destinados ao enfrentamento da guerra declarada por Trump. Todas as fundações
institucionais, produtivas e financeiras erguidas e desenvolvidas ao longo das
últimas décadas estarão concentradas na tarefa de construir a plena soberania
tecnológica. Esse objetivo está definido de modo a permitir o avanço da China
nos assim chamados “setores-chave”, que para bons entendedores significa o
fechamento do gap chinês em relação aos EUA na cadeia dos semicondutores.
De
imediato um grande plano de US$ 1,5 trilhão já está em execução somente para
esta finalidade. Arranjos diplomáticos, econômicos de todo tipo estão em
andamento: eles envolvem desde a construção de novos chips com materiais alternativos
até a “atração” dos melhores engenheiros taiwaneses e sul-coreanos. Esta
estratégia poderá garantir ampla presença chinesa nas cadeias globais de valor.
E,
diga-se, esse projeto é executado com o propósito de “aprisionar” Wall Street
em uma ousada política de abertura planificada da conta de capitais. Sim, o
“desacoplamento” sonhado por Trump não conta com o apoio dos grandes capitais
americanos, nem tampouco dos conglomerados financeiros que, para espanto de
alguns incautos, contam com uma crescente participação acionária chinesa.
O
conjunto da obra aponta para uma acelerada transição entre o crescimento
baseado nas ideias de Arthur Lewis - e sua conhecida oferta ilimitada de mão de
obra - para um processo de crescimento baseado em: ganhos salariais, ampliação
dos serviços públicos e soberanias financeira e tecnológica.
Capitalismo
de Estado ou Socialismo de Mercado? A essa indagação cabe a resposta de Deng
Xiao Ping na aurora dos anos 80: “Não importa a cor do gato se o bicho caça
ratos”. Recentemente, o presidente Xi Jinping anunciou as políticas de
“ampliação do papel do mercado” e de reforço às empresas estatais. O propósito,
dizia ele, é alentar o empreendedorismo e a inovação.
No
Brasil de hoje, o governo e seus apoiadores estão obcecados com a cor do gato.
Se o gato é capaz de caçar ratos, isso não interessa.
*Luiz Gonzaga
Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
*Elias Jabbour é professor dos programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.
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