terça-feira, 3 de novembro de 2020

O QUE A MÍDIA PENSA – Opiniões / Editoriais

O que está em jogo na disputa entre Biden e Trump – Opinião | O Globo

Eleição americana é decisiva para o futuro dos Estados Unidos, do Brasil, do planeta — e da democracia

 ‘Uma República, se puderem mantê-la.’ Com tais palavras, Benjamin Franklin definia, ao final da Convenção da Filadélfia, o sistema de governo criado pela Constituição escrita naquelas semanas de 1787 — que resultaria, nas 23 décadas seguintes, na democracia mais longeva, mais próspera e mais bem-sucedida do planeta. Nunca a manutenção daquela República esteve tão em xeque quanto na eleição de hoje, transformada numa espécie de plebiscito em que os americanos escolherão se ficam com Donald Trump no poder ou o trocarão pelo democrata Joe Biden.

O comparecimento promete ser recorde. Pelo menos 98 milhões, ou 71% do eleitorado de 2016, já haviam votado pelo correio ou pessoalmente até ontem. No Texas, um dos estados mais disputados, a votação antecipada já superava a de quatro anos atrás na última sexta-feira. Num país onde o voto é facultativo, tamanho engajamento em plena pandemia dá uma dimensão do que está em jogo.

Uma vitória de Trump traria não apenas uma surpresa maior do que quando ele desafiou todas as previsões e derrotou Hillary Clinton. Não é exagero afirmar que seria a maior ameaça já vista àquele sistema descrito por Franklin. A reeleição de um presidente cujo comportamento nada republicano guarda ecos dos monarcas e autocratas lançaria o país, nas palavras do analista Michael Hirsh, “como mais um dejeto na pilha de cinzas das repúblicas fracassadas que se estende à Grécia e Roma antigas”. Os Estados Unidos se tornariam, segundo o cientista político Eliot Cohen, “não um estado fracassado, mas uma visão fracassada, uma potência em declínio cujo tempo passou”.

Quem quer que vença —pode levar semanas até sabermos —, as feridas permanecerão abertas num país rachado ao meio, onde o fantasma da secessão continua a assombrar. Além do terremoto interno, o resultado repercutirá em todo o planeta. O isolacionismo de Trump fez recrudescerem o risco climático, a proliferação nuclear, as disputas comerciais. Um segundo mandato traria um divórcio mais duradouro dos europeus, um conflito mais acirrado com os chineses e uma influência mais abrangente de atores perniciosos como Rússia ou Irã.

Uma vitória de Biden, em contrapartida, representaria o retorno dos Estados Unidos ao acordo climático de Paris, novos compromissos nucleares com a Rússia e outro tipo de relação com a China (embora seja improvável a ressurreição do tratado do Pacífico, firmado por Barack Obama para contrabalançar o poderio chinês). Também haveria outra atitude diante da pandemia, da ciência, da imprensa, dos organismos multilaterais e acordos comerciais.

Para o Brasil, Trump ou Biden teriam significados obviamente distintos. O primeiro permitiria a Jair Bolsonaro manter sua ilusão de uma “relação especial” com os Estados Unidos. Persistiria a pressão para o afastamento da China, em particular no leilão da telefonia celular de quinta geração (5G). O segundo não seria essencialmente diferente na disputa com os chineses, mas exerceria pressão maior em nossos pontos frágeis, como meio ambiente ou direitos humanos. Biden, se o confronto com Bolsonaro crescer, aproximaria o Brasil da posição de “pária internacional” aventada outro dia pelo chanceler Ernesto Araújo.

Ou, se prevalecer o bom senso e o Brasil se mantiver na órbita americana sem alienar os chineses, o próprio Biden poderia acelerar conquistas como a entrada na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), reforçar parcerias científicas e comerciais firmadas recentemente — cuja meta, ainda que improvável, é um acordo de livre-comércio — ou até fazer renascer a promessa do assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Tudo depende de quão desanuviado estiver o cenário global.

Nesse ponto, as perspectivas não são exatamente promissoras. Se Trump transformou o outrora partido de Ronald Reagan naquele em que o vice Mike Pence defende tarifas e a guerra comercial, Biden também não teria como retomar o ímpeto da globalização anterior ao trumpismo. As resistências ao livre-comércio são crescentes em seu próprio partido. Por mais caricato que pareça, o isolacionismo de Trump não é gratuito. Corresponde a uma tendência presente na sociedade americana desde Franklin, que volta e meia ressurge.

O que certamente mudaria com Biden seria o estilo. Seu perfil conciliador e seu talento político trariam vantagens evidentes na missão de pacificar os hoje “estados desunidos”. Biden também representaria uma inflexão no avanço das lideranças que, como Trump ou Bolsonaro, vicejam no solo infestado pelas ervas daninhas da polarização, do populismo e do autoritarismo.

Trump surgiu não como político, mas como figura midiática, estrela de reality show que se projetou graças a uma campanha mentirosa nas redes sociais contra Obama. Explorou a fratura da sociedade americana, a propaganda digital, as deficiências de um sistema eleitoral tão vulnerável quanto convoluto e um talento singular de comunicador para provocar o terremoto que ainda chacoalha as instituições republicanas do país. Dado seu narcisismo e seu espírito infantil, é incerto como reagiria a uma derrota. O certo é que, nessa hipótese, não será suave a transmissão do poder — nem se sabe que tipo de república sobreviverá para os americanos manterem.

Um governo que atua contra si mesmo – Opinião | O Estado de S. Paulo

Em uma dinâmica normal, o governo atua politicamente para que o Congresso aprove as medidas de seu interesse. Esse movimento de coordenação dos partidos da base aliada é ainda mais lógico em relação àquelas medidas que, mais do que mera conveniência política, asseguram a governabilidade. No entanto, não se observa essa comezinha lógica na atuação do governo de Jair Bolsonaro. Os partidos da base aliada do governo estão obstruindo a pauta de votação da Câmara dos Deputados, o que impede o andamento de temas que afetam diretamente o governo federal.

Em entrevista no dia 27, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pediu aos partidos da base do governo que sejam responsáveis e acabem com a obstrução. “Espero que a responsabilidade prevaleça. Se o governo não tem interesse nestas medidas provisórias, eu não tenho o que fazer. Eu pauto, a base obstrui e eu cancelo a sessão”, disse Rodrigo Maia.

A obstrução feita pelos partidos da base aliada tem obviamente consequências no calendário das votações, com graves efeitos sobre o ano que vem. Um dos temas mais urgentes, que condicionam o andamento de vários assuntos, é a PEC Emergencial, integrante de um pacote de três propostas apresentadas pelo próprio governo federal no fim do ano passado, no chamado Plano Mais Brasil. “Sem a PEC Emergencial, vai ter muita dificuldade de aprovar o Orçamento”, advertiu o presidente da Câmara.

Em relação ao Orçamento de 2021, o Congresso tem de votar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Nenhuma foi aprovada ainda. Sem a aprovação da LDO até o fim do ano, o governo não terá base legal para realizar gastos discricionários em 2021. A LDO prevê, por exemplo, a possibilidade de o governo executar, de forma provisória, a duodécima parte das despesas, em caso de não aprovação da LOA. Ou seja, sem a LDO, o governo enfrentaria uma brutal paralisia, a afetar até mesmo as despesas obrigatórias.

Em relação à LOA, há previsões de que sua votação ocorra apenas em março de 2021, o que seria prejudicial em primeiro lugar para o próprio governo. Já houve vezes em que a LOA não foi aprovada até quase meados do ano. Absolutamente inusitada, a novidade é a contribuição do próprio governo para o atraso.

Além de prejudicar o funcionamento do poder público e dificultar a saída da crise social e econômica, a obstrução das votações atinge também a aprovação das medidas provisórias – que, em tese, deveriam interessar ao Palácio do Planalto, autor das medidas. “Cabe à base avançar com as medidas provisórias pelo menos”, lembrou o presidente da Câmara.

Diante dessa estranha imobilidade, surgem críticas contra o Congresso, como se os parlamentares estivessem dificultando o andamento de temas politicamente sensíveis; por exemplo, as privatizações. Na entrevista do dia 27, Rodrigo Maia mostrou que falta fundamento a essas críticas. “Quem obstrui a pauta é a base do governo”, disse.

A ratificar a disfuncionalidade da atual situação, chama a atenção o motivo pelo qual a base aliada do governo vem obstruindo as votações do plenário da Câmara. O objetivo é colocar na presidência da Comissão Mista de Orçamento (CMO) um nome alinhado ao deputado Arthur Lira (AL), líder do PP na Câmara e um dos nomes fortes do Centrão. Segundo acordo feito em fevereiro entre os partidos da base, o presidente da CMO neste ano seria o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA). Além de obstruir a pauta, o modo de agir dos partidos do Centrão traz dificuldades para o funcionamento da própria CMO. “Se o acordo não vai ser cumprido, difícil a CMO funcionar”, reconheceu Rodrigo Maia.

Ao longo dos últimos dois anos, o Congresso foi alvo de muitos ataques do bolsonarismo. Nessas campanhas, Rodrigo Maia foi frequentemente apresentado como o grande coordenador do Centrão, a dificultar o andamento das reformas. Não há dúvida de que o Legislativo merece várias críticas. Mas é de justiça reconhecer que Jair Bolsonaro tem conseguido a proeza de fortalecer o que há de pior e mais disfuncional no Congresso.

A utopia bolsonarista – Opinião | O Estado de S. Paulo

Nela, o povo é subalterno aos devaneios de poder do presidente – ou é tratado como inimigo.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem na ponta da língua a explicação para o fato, de resto notório, de que o governo que prometeu R$ 1 trilhão em privatizações ainda não conseguiu se desfazer de nenhuma estatal, seja grande ou pequena: “Há acordos políticos que dificultam, há uma mentalidade cultural equivocada. Somos prisioneiros cognitivos de uma visão de mundo que está, hoje, obsoleta”.

No mesmo evento em que o ministro Paulo Guedes fez suas inusitadas considerações sociológicas, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, defendeu que o País seguisse o exemplo do Chile e convocasse um plebiscito para elaborar uma nova Constituição. O argumento, disse o parlamentar governista, é que a atual Constituição deixou o Brasil “ingovernável”.

As duas manifestações resumem a pobreza do debate público sob o governo de Jair Bolsonaro. Por meio delas, ficamos sabendo que os problemas enfrentados pelo governo jamais são resultado de suas escolhas, e sim fruto de arranjos políticos de gente com mentalidade atrasada e de uma Constituição disfuncional.

E isso tudo num evento intitulado Um Dia pela Democracia, promovido pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Ora, se é de democracia que se trata, e é, não cabe ao governo, por mais iluminado que se considere, imaginar que os grandes impasses nacionais só serão resolvidos caso haja uma nova Constituição ou, quem sabe, um novo povo, menos “atrasado”.

Convém lembrar que foi sob esta Constituição que, num passado não muito distante, foram aprovadas medidas cruciais para o País, como o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o teto de gastos e um robusto programa de privatizações. Ou seja, o problema não é bem a Constituição, muito menos o povo.

Na utopia bolsonarista, contudo, não há lugar para o povo. Ou melhor, há, mas na condição de subalterno aos devaneios de poder do sr. Bolsonaro – e quem recusa esse papel é tratado como inimigo. Assim, o debate público, cerne da democracia, é reduzido a uma briga de rua.

Quando o presidente Bolsonaro converte a discussão sobre a pandemia de covid-19 em instrumento para atacar adversários, por exemplo, contamina a atmosfera política de tal maneira que todas as medidas tomadas por autoridades se tornam automaticamente suspeitas de embutir motivação eleitoreira – e, de quebra, se prestam a justificar a inépcia do governo na gestão da crise.

Um ambiente assim é propício ao florescimento do extremismo, e aí o presidente Bolsonaro joga em casa. Incapaz de formular um projeto claro de governo, seja por incompetência, seja porque nunca pensou nisso, o presidente sabe que sua sobrevivência política depende da desmoralização da democracia. 

Não é por outro motivo que Bolsonaro, ora disfarçado de “moderado”, ataca dia e noite a imprensa, desdenha do Congresso, desrespeita o Judiciário e hostiliza qualquer forma de oposição, mesmo que isso custe vidas, como acontece neste momento em razão da pandemia. Ao fazê-lo, o presidente sinaliza que a democracia é, para ele, coisa de gente frouxa – bom mesmo é o regime no qual prevalece o grito.

Esse espírito ameaça inviabilizar a construção de políticas públicas, pois intoxica as discussões sobre os problemas nacionais. Felizmente, contudo, a democracia tem seus mecanismos de defesa. Contra a utopia doentia do bolsonarismo, as forças vivas da sociedade podem – e devem – estimular o debate político na busca de soluções para os grandes problemas nacionais. Há hoje diversos grupos suprapartidários dedicados a formular propostas de reformas e há também a possibilidade de apresentação de projetos de iniciativa popular – quatro deles já se converteram em lei.

Ou seja, o povo deve continuar a ser protagonista de seu destino, por meio da política tradicional e das novas formas de organização proporcionadas pela comunicação em rede. Se assim for, governos com vocação autoritária, que só enxergam o povo como força subsidiária de seus projetos liberticidas, podem até fazer barulho, mas não prosperarão.

Brasil digital – Opinião | O Estado de S. Paulo

OCDE apresentou oportuno mapeamento das oportunidades e dos desafios para o País.

Num momento em que a pandemia acelerou a digitalização das relações sociais, econômicas e políticas, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apresentou um oportuno mapeamento dos desafios e oportunidades para o Brasil no estudo A Caminho da Era Digital.

A penetração da banda larga no Brasil é semelhante à que ocorre nos países da região, mas bem mais baixa que a média dos países da OCDE. Dada a envergadura do agronegócio, um dos principais desafios é ampliar a conectividade nas zonas rurais. Outro é melhorar o acesso para escolas e alunos.

Segundo a Anatel, enquanto 91,5% das zonas urbanas têm cobertura, nas rurais o índice é de 10,7%. Entre os alunos das classes D e E, 60% não têm acesso à rede. Esse foi o principal fator de aumento da desigualdade do ensino durante a pandemia.

A fim de melhorar a conectividade, a OCDE recomenda a criação de uma agência reguladora independente de comunicação e radiodifusão; a introdução de um regime de licenciamento unificado para esses setores; e a integração dos fundos setoriais num único fundo.

Outro desafio é ampliar a adoção das tecnologias digitais. Quase um em cada quatro brasileiros adultos jamais utilizou a internet e as empresas, especialmente as pequenas, ficam atrás de seus pares nos países da OCDE no uso da tecnologia digital. Segundo a Fiesp, menos de 2% das indústrias podem ser consideradas 4.0. Além disso, o Brasil tem a maior carga tributária do mundo na banda larga fixa e a quarta maior na móvel. 

Os incentivos ao emprego da tecnologia digital passam por programas de conscientização; pela remoção de barreiras regulatórias ao desenvolvimento do e-commerce; e por incentivos fiscais para a atualização tecnológica, treinamento e investimentos em digitalização nas empresas. 

Em termos de pesquisa e inovação o País investe mais que a média latino-americana, mas também está atrás dos países da OCDE. Cabe ao poder público garantir recursos adequados, estáveis e previsíveis para a pesquisa, além de desenvolver roteiros claros e fomentar a cooperação entre as partes interessadas, especialmente na transferência de conhecimentos entre empresas e academia em áreas-chave como inteligência artificial e análise de dados.

De um modo geral, o diagnóstico da OCDE aponta os riscos de velhos vícios ante um novo desafio. Trata-se de melhorar o ambiente de negócios por meio da desburocratização, transparência, segurança jurídica, capacitação e produtividade.

O leilão para a instalação de rede 5G no ano que vem é uma oportunidade para o País demonstrar sua capacidade de adotar as melhores práticas internacionais. Como nota a OCDE, será o maior leilão do espectro 5G de todos os tempos, e as partes interessadas o estarão observando com muita atenção. A atuação da Anatel é fundamental para garantir um “mercado competitivo”, disse o secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, aludindo aos perigos de distorções provenientes das pressões de EUA e China, em plena disputa por hegemonia tecnológica.

O grande fator de risco para o Brasil tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro. A subserviência a Donald Trump é talvez a única diretriz clara do governo no campo das relações internacionais. Mas, se as autoridades do poder público e a sociedade civil precisam pressionar o presidente a fim de neutralizar suas idiossincrasias, nem por isso as autoridades técnicas devem ignorar as suspeitas em relação à empresa chinesa Huawei, uma das três maiores fornecedoras do mundo. Nos EUA, não apenas os republicanos, mas os democratas acusam a Huawei de apresentar riscos à proteção de dados. Japão, Austrália, Suécia e Reino Unido suspenderam as transações com a empresa. França e Alemanha realizam uma avaliação.

Tudo isso só redobra a responsabilidade das instâncias reguladoras nacionais, sobretudo a Anatel, por um processo transparente e técnico. São duas condições cruciais para que a sociedade brasileira logre sobrepor os interesses nacionais aos interesses comerciais e geopolíticos de outras nações, bem como às taras ideológicas de seu presidente.

Um passo para o BC – Opinião | Folha de S. Paulo

Mandatos para os dirigentes do órgão vão aprimorar condução da política de juros

No último quarto de século, o Brasil registrou a menor inflação desde que se tornou uma economia urbana e industrializada. Mais do que a pacotes engenhosos, o feito se deve ao aperfeiçoamento paulatino da atuação do Banco Central.

Se o Plano Real, lançado em 1994, pôs fim a mais de uma década de preços em disparada, a estabilidade da moeda desde então tem sido perseguida por um BC que gozou de autonomia —com a contrapartida de transparência e prestação de contas— durante a maior parte do período. Agora, o país se encontra maduro para um novo avanço.

Trata-se de conceder mandatos fixos para o presidente e os diretores do órgão, como prevê projeto de lei complementar pronto para votação no Senado a partir desta terça-feira (3). Institucionaliza-se, com o texto, uma prática que tem se mostrado viável e eficaz.

O BC conta com mais credibilidade quando consegue atuar a salvo de ingerências do governante de turno —que pode se ver tentado, por exemplo, a vetar uma alta de juros, mesmo necessária, em momentos de eleição ou dificuldade política. Com mais coerência e credibilidade, conseguem-se resultados melhores a custos menores.

Cumpre desfazer mitos que cercam a proposta. Não é uma panaceia, como alguns de seus defensores fazem parecer: um presidente da República irresponsável pode aparelhar o BC com nomes desqualificados; uma gestão imprudente do Orçamento pode minar a efetividade da política monetária.

Tampouco a autonomia formal implica, como acusam críticos mais exaltados, uma política de juros dissociada das preferências consagradas pelo voto popular: o comando do BC seguirá sendo indicação direta do presidente da República.

A proposta em exame no Senado estabelece que o órgão terá como missões o controle da inflação, a suavização das oscilações da atividade econômica e o fomento do emprego —objetivos que, por vezes, podem parecer em contradição.

A experiência global demonstra, porém, que a estabilidade monetária favorece a economia e o mercado de trabalho no longo prazo.

Pelo projeto, o presidente e os oito diretores do BC serão avaliados pelo Senado, como já ocorre hoje, e terão mandatos de quatro anos, não coincidentes entre si e, portanto, nem sempre coincidentes com o do presidente da República.

Provavelmente caberá à Câmara dos Deputados, que ainda se debruçará sobre a matéria, definir o cronograma mais adequado para a aplicação do novo modelo.

Em qualquer hipótese, a aprovação do projeto representará um passo importante da agenda econômica, hoje claudicante, e um aprimoramento institucional já consolidado nas nações desenvolvidas.

Disparate constitucional – Opinião | Folha de S. Paulo

Plebiscito descabido proposto pelo líder na Câmara soa a incapacidade política

O líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), tangenciou a ironia ao dizer que o presidente Jair Bolsonaro se apoia agora no chamado centrão movido por bom senso.

Mais parece que o faz por necessidade, acossado no front jurídico-policial; ademais, o bom senso é escasso em Brasília —e o próprio parlamentar dá prova disso.

Barros somou disparate novo ao fluxo que jorra do Planalto e da Esplanada. Saiu-se com a proposta de realizar um plebiscito sobre a convocação de uma Constituinte para substituir a Carta de 1988.

Na falta de ideias razoáveis, inspirou-se na recente consulta chilena —inspirada, de fato, por uma demanda da sociedade— para lançar o que anos atrás se chamava de factoide. Vale dizer, acender discussão que não leva a lugar nenhum.

A tese é antiga, tendo sido aventada à esquerda, à direita e ao centro nos últimos anos. Ampara-se, no formato mais benigno, na ilusão de que uma reformulação completa da Constituição resultará em uma peça de amplo consenso e capaz de acelerar o desenvolvimento do país. Nas piores versões, embute intentos autoritários.

O texto de 1988 já garantiu 32 anos de estabilidade democrática ao país. Tem seus defeitos, como a prolixidade legiferante e a multiplicação de privilégios corporativistas que esgarçam as amarras da prudência orçamentária, mas carrega provisões suficientes para reforma e atualização.

Nessas três décadas, a Carta já recebeu 108 emendas (fora as 6 da revisão de 1993-94), 9 delas só na administração Bolsonaro.

É o preço a pagar por uma Constituição tão detalhista; o lado positivo, por assim dizer, reside nessa condição flexível, que permite sua adequação a novas configurações políticas e econômicas sem passar por conflagrações de alto custo.

Um líder de governo numa Casa do Congresso, para fazer jus ao título e ao privilégio, deveria concentrar-se em fazer avançar emendas constitucionais propiciadoras das reformas imprescindíveis que o Planalto não consegue tirar da inércia. Aventar um plebiscito, na atual paralisia, equivale a uma confissão de incompetência política.

Se a antes tão abominada aliança com os partidos do centrão não servir para o avanço de uma agenda de governo, o presidente Jair Bolsonaro deixará evidente que a buscou apenas e tão somente para proteger-se de eventuais consequências de seus desatinos.

Trump prepara batalha judicial em eleição histórica – Opinião | Valor Econômico

O modelo de democracia no Ocidente foi o dos Estados Unidos, até Donald Trump. Como um aspirante a ditador de quinta categoria, Trump não acredita que alguém possa vencê-lo em uma eleição e não pretende entregar o poder a quem ganhar nas urnas. Ele ameaça uma histórica chicana eleitoral, colocando em xeque os fundamentos da democracia americana.

Há enorme tolerância nos EUA para presidentes medíocres - a maioria deles não escaparia a essa classificação. Trump, pior do que isso, foge à regra. Mentiroso compulsivo, tentou desmontar, em alguns casos com sucesso, tudo que seu país fez nos últimos 50 anos nas arenas internacional e doméstica. Politicamente desastroso, escondeu fraudes pessoais. Reportagens recentes mostraram-no mais como um fanfarrão incompetente e endividado do que o empresário bem-sucedido que sua propaganda vende.

A reeleição de Trump começou a ruir a partir do momento em que algo imprescindível foi exigido dele: comando. A pandemia do novo coronavírus, que desdenhou, pode merecidamente retirá-lo do cargo que nunca deveria ter ocupado. Não há nada que tenha feito em seu governo que mereça ser lembrado. Até feitos de que se gaba na economia, por exemplo, foram legados por antecessores, e os impulsos próprios, como o abatimento de impostos aos mais ricos, de nada serviram aos propósitos que visou: aumentar os investimentos no país. Eles diminuíram.

O democrata Joe Biden está a caminho da vitória, e lidera, por margem variável, a maioria dos Estados que não são fiéis a nenhum partido, os “swing states”, que decidem as eleições. Há tempos Trump tem preparado cambalachos para evitar a derrota. Ameaçou cortar verbas da Ucrânia se o presidente do país não investigasse supostos atos de corrupção do filho de Biden. Abandonou a trilha após um processo de impeachment do qual escapou graças aos republicanos de boa vontade - todos.

O colapso da economia com a pandemia, na qual os EUA são líderes em infectados e mortes, mostrou que Trump foi um dos piores presidentes a enfrentá-la e pode ter arruinado a tolerância dos americanos para com um presidente alienado e cheio de si.

Prestes a ser destronado, Trump se preparou para um litígio judicial em grande estilo. Nomeou às pressas uma candidata para vaga na Suprema Corte, Amy Barrett, aprovada por um Senado de maioria republicana, deslocando o pêndulo judicial para causas conservadoras (maioria de 6 a 3). Amy, John Roberts e Brett Kawanaugh, outra indicação de Trump, trabalharam juntos no time de George Bush na contestação judicial de votos em 2000 na Flórida, que deu a vitória aos republicanos contra o eleito pelo voto popular, Al Gore.

As eleições americanas definirão parte do futuro global. Governantes populistas e autoritários, que se inspiram nas bazófias de Trump, podem se fortalecer ou sumir na poeira da história dependendo do resultado. Trump, um realista, manobra com táticas provincianas. A pandemia levou os eleitores a enviar seus votos pelos correios, um fato que o presidente usou para vilipendiar como fraude democrata para derrotá-lo ilegalmente.

Pesquisas apontaram que 70% dos votos por via postal vieram de democratas, enquanto que metade dos republicanos colocará seus votos nas urnas. Como não há estrutura para atender com rapidez a enxurrada nunca vista de sufrágios pelos correios - a maior parte dos 93 milhões já enviados - há centenas de pedidos judiciais republicanos para invalidar os votos que não cheguem às autoridades eleitorais até amanhã. Como os votos presenciais são na maioria republicanos, serão contados antes e Trump já disse que pretende anunciar sua vitória tão cedo quanto possível, e armar um inferno judicial para a contagem posterior. Com isso, o resultado levará semanas até ser oficialmente proclamado.

Trump é um dos piores presidentes americanos de todos os tempos. Nada do que disse que faria deu certo, embora tenha satisfeito sua base de empresários e banqueiros bilionários, para quem baixou impostos. A promessa de mais empregos na indústria e revigoração do parque manufatureiro do país naufragou com uma política protecionista insustentável. Sua batalha contra a China favoreceu Pequim, enquanto seus ataques aos antigos aliados enfraqueceram os Estados Unidos. Apenas seu narcisismo o impede de ver seus retumbantes fracassos, que, ao que tudo indica, as urnas consagrarão com uma mensagem de adeus - isenta de saudades.

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