Remoção
de presidentes catastróficos é derradeira ferramenta de defesa da democracia
Jair
Bolsonaro comete
crimes de responsabilidade diversos desde que subiu a rampa do
Planalto. Dezenas
de pedidos de impeachment protocolados na Câmara ainda aguardam
encaminhamento, pois Rodrigo Maia sabe que o destino do presidente não será
decidido no tabuleiro das leis, mas no da política. A tragédia de Manaus marca
uma reviravolta no cenário: depois das mortes
por asfixia, o impeachment transitou do éter dos sonhos para a esfera
das possibilidades.
A
histeria do impeachment é, hoje, a maior ameaça ao impeachment. O Congresso não
impedirá o presidente pelo
chiclete ou pelo leite condensado. Os escândalos culinários provavelmente
indicam um rastro de esquemas corruptos ligados a superfaturamentos,
fornecedores fantasmas e lavagem de dinheiro. Contudo, a investigação do
labirinto demandaria meses, obscurecendo o crime maior que tem o potencial de
abreviar o pesadelo nacional.
Manaus é a prova de que já não dispomos de um governo funcional. Nos países modernos, retirantes não perecem de inanição na beira da estradas, não porque a miséria foi extirpada mas porque o Estado é capaz de mobilizar meios emergenciais para evitar o desenlace fatal. As mortes por falta da cilindros de oxigênio nos remetem a um passado mais ou menos distante, quando famélicos desabavam, exaustos e desamparados, fugindo das secas nordestinas. Na época, faltavam-nos aviões, helicópteros, estradas, caminhões e recursos financeiros. Hoje, tudo isso existe: o que falta é governo.
Os
doentes do Amazonas não morreram do coronavírus, mas do vírus do desleixo, da
incúria, da inépcia, do desinteresse
criminoso. As sondagens
de opinião evidenciam que o povo entendeu a cadeia de comando:
Pazuello, general de ópera bufa, não passa de um estafeta do autêntico culpado.
Não é casual que, dias atrás, um tanto apavorado, sob zurros de uma chusma de
lambe-botas, o ocupante do cargo presidencial tenha batido seus próprios
recordes na olimpíada da malcriação.
Impeachment
é, essencialmente, uma decisão política. Só se impedem presidentes cujas taxas
de aprovação caíram às profundezas abissais. Bolsonaro continua longe dessa
zona escura e fria, mas submerge em velocidade acelerada. Os sinais de alarme,
que começaram a soar no Planalto na hora do nocaute
imposto por Doria na batalha da vacina, dispararam quando emergiram as
aterradoras cenas manauaras.
De
lá para cá, o governo entrou no modo pânico. O presidente rastejou
aos pés dos chineses para implorar por suprimentos vacinais e, nos
círculos internos do poder, cogita-se oferecer em sacrifício público os corpos
lacerados do trapalhão
da Saúde e do místico
ocultista do Itamaraty. No atual estágio da crise, Bolsonaro já não
pode salvar-se a si mesmo: para voltar à tona, depende da incompetência de seus
adversários.
Impeachment
é a soma de um crime de responsabilidade com uma narrativa política
persuasiva. Dilma caiu
pois contou-se uma história (verdadeira, aliás) sobre estelionato eleitoral,
caos econômico e corrupção política. No caso de Bolsonaro, a sanitização do
Planalto exige a releitura da história da pandemia sob a lente de aumento da
agonia dos hospitais de Manaus. O oxigênio —ou melhor, a falta letal dele—
confere sentido ao negacionismo perene, à sabotagem do distanciamento social,
ao curandeirismo do “tratamento
precoce” e ao atraso da imunização.
Há cinco anos, petistas inconformados asseveravam que o uso do instrumento constitucional do impeachment debilita as democracias. A verdade é bem mais complexa. Sucessivos impedimentos de chefes de Estado certamente iluminam instabilidades dos sistemas democráticos. Mas a remoção de presidentes catastróficos é a derradeira ferramenta de defesa da democracia. O Brasil, apesar de tudo, não merece o governo da ultradireita boquirrota e delirante. Uma praga por vez é suficiente.
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