sábado, 30 de janeiro de 2021

Monica de Bolle* - A política econômica de Guedes e a Covid-19

- Revista Época

O que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da população brasileira neste momento?

 “Quer criar auxílio de novo? Tem de ter muito cuidado, pensar bastante. Se fizer isso, não pode ter aumento automático de verbas para a educação e segurança pública porque a prioridade passou a ser a guerra (contra a Covid). Pega as guerras aí para ver se tinha aumento de salário, se tinha dinheiro para a saúde e educação. Não tem, é dinheiro para a guerra.” Essas palavras são de Paulo Guedes em recente matéria da Folha de S.Paulo.

É bom lembrar que a metáfora da guerra é inadequada para a pandemia, uma crise sanitária com desdobramentos singulares na economia. O ministro deveria saber disto: na guerra, o capitalismo implica a produção intensiva de certos bens. Mas a fala também deixa ver a ideia que Guedes tem do capitalismo. Ela tem relação com um fenômeno que fez Arendt afirmar, sobre o imperialismo em suas Origens do totalitarismo, que “a expansão não era uma fuga apenas para o capital supérfluo. Mais importante do que isso, a expansão protegia os donos do capital contra a ameaça de se manterem, eles próprios, completamente supérfluos e parasitários”. Arendt, tão citada por liberais, era uma crítica da centralidade da economia na política, da política econômica como uma forma de administração da vida. Se cabe alguma analogia entre a pandemia no Brasil e a guerra é que o governo que Guedes integra e ao qual dá racionalidade administra a morte.

Desde o início da pandemia, a política econômica de Guedes contextualiza a epidemia no Brasil e aponta as escolhas que devem ser administradas em tal situação.

Auxílio ou saúde?

Auxílio ou segurança pública?

Auxílio ou educação?

A descontinuidade e os contrassensos deveriam ser visíveis, mas muitos se esforçam para fazer vista grossa. Não há antagonismo entre saúde e auxílio, por exemplo. Se o governo de fato quisesse tomar medidas para proteger a população e frear as cadeias de transmissão — agora mais do que necessário, com a presença de novas variantes do vírus — estaríamos impondo quarentenas e cordões sanitários em várias partes do país. Para tanto, necessitaríamos do auxílio emergencial e, claro, de mais recursos para o SUS e para os hospitais colapsados em vários estados, sem oxigênio.

Mas a política econômica de Guedes nunca enxergou a saúde pública e a sustentação da economia como aspectos intrínsecos do problema e positivamente relacionados. Depois de passarmos alguns meses no início da pandemia argumentando que não havia antagonismo entre saúde e economia, o negacionismo prevaleceu. Muitos já comentaram o ocorrido, inclusive eu. Foi há pouco, apenas em novembro de 2020, que um dos principais assessores de Guedes no Ministério da Economia negou a presença de nova onda pandêmica no país, citando “estudos epidemiológicos” feitos pela equipe de economistas. Àquela altura, as variantes detectadas no Reino Unido e na África do Sul já alarmavam os cientistas. E, pouco depois, tomaríamos conhecimento da variante P.1 do vírus, a que surgiu em Manaus. À época, ainda dava tempo de prorrogar o decreto de calamidade, permitindo que o auxílio fosse renovado e que mais recursos fossem destinados para a saúde. Mas o mesmo assessor de Guedes declarou que a renovação do auxílio seria ruim para os mais pobres pois contribuiria para elevar a dívida brasileira, o que poderia criar condições para uma crise fiscal futura.

Parte do mercado, do empresariado e da imprensa abraçou a visão de Guedes e de seus assessores não nominalmente, mas pela insistência na “responsabilidade fiscal”, nas reformas, na integridade do teto de gastos em plena pandemia. Tudo em nome da “expansão”, do crescimento econômico a que Arendt se refere e que, no contexto atual, produz seres supérfluos, à semelhança do processo que ela analisa. Ao fazer essa opção ante uma epidemia descontrolada, tornam-se parasitas de todo o sistema político e econômico. Tornam-se, também, parasitas dessas vidas que se foram. São palavras duras. Mas considerem: O que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da população brasileira neste momento? Não no futuro, no presente, agora. Enquanto escrevo penso nas mortes que ocorreram nestes minutos. É disso que se trata.

Responsabilidade fiscal? É óbvio que esse tema é importante. Contudo, é mais importante do que salvar vidas em meio a uma crise humanitária? Estamos todos cegos, ou simplesmente permitimos que nos manipulassem para que víssemos no cenário de absoluta tragédia que nos cerca algo de normalidade dos tempos? Bolsonaro não é o único responsável pelo calvário brasileiro. Seus ministros são responsáveis. Guedes é responsável. A política econômica de Guedes é responsável. E, como tal, ela é indefensável. Que isso fique bem claro para quem ainda queira defendê-la.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

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