O
que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma
parte da população brasileira neste momento?
“Quer criar auxílio de novo? Tem de ter muito
cuidado, pensar bastante. Se fizer isso, não pode ter aumento automático de
verbas para a educação e segurança pública porque a prioridade passou a ser a
guerra (contra a Covid).
Pega as guerras aí para ver se tinha aumento de salário, se tinha dinheiro para
a saúde e educação. Não tem, é dinheiro para a guerra.” Essas palavras são de
Paulo Guedes em recente matéria da Folha de
S.Paulo.
É
bom lembrar que a metáfora da guerra é inadequada para a pandemia, uma crise
sanitária com desdobramentos singulares na economia. O ministro deveria saber
disto: na guerra, o capitalismo implica a produção intensiva de certos bens.
Mas a fala também deixa ver a ideia que Guedes tem do capitalismo. Ela tem
relação com um fenômeno que fez Arendt afirmar, sobre o imperialismo em
suas Origens do totalitarismo,
que “a expansão não era uma fuga apenas para o capital supérfluo. Mais
importante do que isso, a expansão protegia os donos do capital contra a ameaça
de se manterem, eles próprios, completamente supérfluos e parasitários”.
Arendt, tão citada por liberais, era uma crítica da centralidade da economia na
política, da política econômica como uma forma de administração da vida. Se
cabe alguma analogia entre a pandemia no Brasil e a guerra é que o governo que
Guedes integra e ao qual dá racionalidade administra a morte.
Desde o início da pandemia, a política econômica de Guedes contextualiza a epidemia no Brasil e aponta as escolhas que devem ser administradas em tal situação.
Auxílio
ou saúde?
Auxílio
ou segurança pública?
Auxílio
ou educação?
A
descontinuidade e os contrassensos deveriam ser visíveis, mas muitos se
esforçam para fazer vista grossa. Não há antagonismo entre saúde e auxílio, por
exemplo. Se o governo de fato quisesse tomar medidas para proteger a população
e frear as cadeias de transmissão — agora mais do que necessário, com a
presença de novas variantes do vírus — estaríamos impondo quarentenas e cordões
sanitários em várias partes do país. Para tanto, necessitaríamos do auxílio
emergencial e, claro, de mais recursos para o SUS e para os hospitais
colapsados em vários estados, sem oxigênio.
Mas
a política econômica de Guedes nunca enxergou a saúde pública e a sustentação
da economia como aspectos intrínsecos do problema e positivamente relacionados.
Depois de passarmos alguns meses no início da pandemia argumentando que não
havia antagonismo entre saúde e economia, o negacionismo prevaleceu. Muitos já
comentaram o ocorrido, inclusive eu. Foi há pouco, apenas em novembro de 2020,
que um dos principais assessores de Guedes no Ministério da Economia negou a
presença de nova onda pandêmica no país, citando “estudos epidemiológicos”
feitos pela equipe de economistas. Àquela altura, as variantes detectadas no
Reino Unido e na África do Sul já alarmavam os cientistas. E, pouco depois,
tomaríamos conhecimento da variante P.1 do vírus, a que surgiu em Manaus. À
época, ainda dava tempo de prorrogar o decreto de calamidade, permitindo que o
auxílio fosse renovado e que mais recursos fossem destinados para a saúde. Mas
o mesmo assessor de Guedes declarou que a renovação do auxílio seria ruim para
os mais pobres pois contribuiria para elevar a dívida brasileira, o que poderia
criar condições para uma crise fiscal futura.
Parte
do mercado, do empresariado e da imprensa abraçou a visão de Guedes e de seus
assessores não nominalmente, mas pela insistência na “responsabilidade fiscal”,
nas reformas, na integridade do teto de gastos em plena pandemia. Tudo em nome
da “expansão”, do crescimento econômico a que Arendt se refere e que, no
contexto atual, produz seres supérfluos, à semelhança do processo que ela analisa.
Ao fazer essa opção ante uma epidemia descontrolada, tornam-se parasitas de
todo o sistema político e econômico. Tornam-se, também, parasitas dessas vidas
que se foram. São palavras duras. Mas considerem: O que significa
“responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da
população brasileira neste momento? Não no futuro, no presente, agora. Enquanto
escrevo penso nas mortes que ocorreram nestes minutos. É disso que se trata.
Responsabilidade
fiscal? É óbvio que esse tema é importante. Contudo, é mais importante do que
salvar vidas em meio a uma crise humanitária? Estamos todos cegos, ou
simplesmente permitimos que nos manipulassem para que víssemos no cenário de
absoluta tragédia que nos cerca algo de normalidade dos tempos? Bolsonaro não é
o único responsável pelo calvário brasileiro. Seus ministros são responsáveis.
Guedes é responsável. A política econômica de Guedes é responsável. E, como
tal, ela é indefensável. Que isso fique bem claro para quem ainda queira
defendê-la.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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