sábado, 30 de janeiro de 2021

João Gabriel de Lima - O Canadá e o Brasil na ‘era da precariedade’

- O Estado de S. Paulo

O coronavírus chamou atenção para a importância de uma rede de proteção social permanente

Parte do enredo de As Invasões Bárbaras, filmaço que levou o Oscar de produção estrangeira em 2003, se passa nos corredores de um hospital público do Canadá. O que se vê não combina com um país considerado modelo de bem-estar social: doentes amontoados pelos corredores, atendimento precário, burocracia infinita para agendar procedimentos. O protagonista do filme, Rémy, tem uma doença terminal. Ele só consegue tratamento decente porque seu filho, Sébastien, pode pagar os honorários dos melhores médicos. 

Poucos países são mais diferentes que Canadá e Brasil. Jogamos vôlei na praia, eles brincam com bonecos na neve. Nosso mito musical é Tom Jobim, o gênio da bossa nova; o deles, Glenn Gould, pianista que revolucionou a música clássica. No mundo do coronavírus, no entanto, os dois países têm a pandemia em comum – e precisaram desenhar programas emergenciais a toque de caixa. “O Canadá criou do dia para a noite um seguro-desemprego dos sonhos”, diz o cientista político Ricardo Tranjan, brasileiro radicado em Ottawa, personagem do minipodcast da semana. Tal seguro pode inspirar algo que se estenda a tempos normais – o que seria um saldo positivo da pandemia.

Tranjan trabalha no Canadian Center for Policy Alternatives (CCPA), um think tank de políticas sociais com viés econômico. “A pandemia colocou em foco a realidade precária de vários trabalhadores essenciais, como cozinheiros, balconistas de farmácia, caixas de supermercado”, afirma Tranjan. Para ele, o flagelo que nos assola nada mais fez que chamar a atenção para uma questão de fundo: a transformação radical do mundo do trabalho no Ocidente. 

O emprego industrial, com benefícios e a proteção de sindicatos, migrou para a Ásia ou vem sendo gradativamente substituído por robôs. Os novos postos de trabalho são na área de serviços, onde predomina a rotatividade. Os governos passaram a ter um enorme desafio: criar benefícios e seguros sociais para um número crescente de trabalhadores precários. Que, diga-se de passagem, são também eleitores. Por isso, o sucesso da empreitada é condição de sobrevivência da própria democracia – e também a melhor vacina contra aventureiros populistas.

Com a pandemia, tornou-se clara a importância de um sistema eficiente de saúde pública. Na era da economia do conhecimento, cidadãos que não tiveram acesso a uma boa educação pulam de emprego em emprego e não têm benefícios. Precisam de hospitais quando ficam doentes e de seguros fáceis de acessar quando estão sem trabalho – e não apenas de auxílios em situações de emergência.

Nada disso é barato. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, será necessário cortar despesas não essenciais – tarefa para o Congresso que retorna do recesso na segunda-feira (voltaremos ao assunto numa das próximas colunas). Os estudos de Tranjan e seus colegas mostram que seguros sociais bem desenhados trazem retorno positivo para as economias como um todo, não apenas para os beneficiários.

A crise do coronavírus chamou a atenção para a importância de uma rede de proteção social permanente, nesta “era da precariedade” em que vivemos. O filme As Invasões Bárbaras flagra o processo no início – mostra um Estado incapaz de dar conta das necessidades dos cidadãos. Eis o maior desafio dos governos democráticos, sejam eles de esquerda ou de direita – afinal, nem todo mundo tem, como Rémy, um filho rico para pagar as contas do hospital.

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