Silvio Essinger / O Globo
RIO
- Pergunte sobre Zé Kéti a quem é do samba: a resposta pode se estender por
horas. Natural do Rio de Janeiro, o cantor e compositor, que morreu em 1999,
deixou uma obra que serviu a intérpretes do quilate de Luiz Melodia, Nara Leão,
Jair Rodrigues, Jamelão, Paulinho da
Viola e Elza Soares.
E foi um dos grandes personagens da cultura brasileira do século XX, ao ajudar
a aproximar morro e asfalto no musical “Opinião” (1964, de Augusto Boal), e
participar de obras fundamentais do cinema nacional como “Rio 40 graus”,
de Nelson
Pereira dos Santos. No filme, de 1955, Kéti fez de tudo um pouco
—foi ator, forneceu músicas para a trilha e cozinhou para a equipe de filmagem.
—
O Zé Kéti é um compositor brasileiro que merecia ser mais observado, porque tem
uma obra popular vastíssima e sucessos impressionantes, como “Mascarada”, “Diz
que fui por aí”, “Nega Dina”... e, é claro, “A voz do morro” (dos versos “eu
sou o samba / a voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor), que é até hoje o
grande número final do shows de samba — diz o fundador do Samba do Trabalhador,
Moacyr Luz.
O
músico é uma das estrelas da série de shows “100 anos da voz do morro”, que
acontece de quinta a domingo no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio
para celebrar o centenário do artista (que se completa em 16 de setembro).
Segundo Geisa Ketti, filha, guardiã e inventariante da obra de Zé Kéti, a iniciativa da produtora Stella Lima, encampada pelo CCBB, será uma das poucas homenagens que o pai deve receber neste ano do centenário.
— Em 2020, iniciamos um documentário com o meu irmão José Carlos, mas ele veio a falecer em maio, vítima de Covid, e tudo parou — lamenta. — No final do ano nós começamos a nos mobilizar com alguns amigos para iniciar a construção de um site que provavelmente vamos conseguir lançar em fevereiro. Estamos à cata de depoimentos e de fotos. E chamamos amigos do Brasil todo, de Portugal e da Argentina para fazerem rodas de samba em homenagem a Zé Kéti.
Na
obscuridade
Apesar
de ter feito muito sucesso nos anos 1950 e 60 (em 1967, ele lançou um dos
grandes clássicos carnavalescos, a marcha-rancho “Máscara negra”), Zé Kéti
passou as décadas seguintes na obscuridade. Em 1996, o cantor Zé Renato
surpreendeu a todos ao lançar o CD “Natural do Rio de Janeiro”, só de
composições do sambista.
—
As pessoas conheciam as músicas dele, mas não sabiam que eram dele. De uma
certa forma, o disco apresentou o Zé Kéti a uma geração — acredita Zé Renato,
que amanhã apresenta na série do CCBB, com o pianista Cristóvão Bastos, o show
“Zé Kéti e o cinema”. — Tem esse lado de ele ser um cronista, de trazer para as
músicas dele as pessoas com quem convivia, mas ele compunha melodias com
desenhos cheios de surpresas, que desembocam num lugar maravilhoso. Zé Kéti era
muito sofisticado.
Para
o diretor Cacá Diegues, com quem Zé trabalhou em “A grande cidade” (1966), ele
foi “um dos fundadores do Cinema Novo”.
—
É dele o hino inaugural, “A voz do morro”, uma canção que iluminava as imagens
de “Rio 40 graus”, a primeira obra e guia do movimento que revelava o Brasil no
cinema, como ele era de fato. E depois, ele ainda participou de “Rio Zona
Norte”, “O desafio” e “A grande cidade”, filmes decisivos no início do Cinema
Novo. Não satisfeito, Zé Kéti foi adotado por Nara Leão (no “Opinião”) e acabou
adotando-a como instrumento do canto popular que se impôs à bossa nova.
Dos
pioneiros da bossa, o cantor e compositor Carlos Lyra tornou-se até parceiro de
Zé Kéti, nos tempos do “Opinião”, no “Samba da Legalidade”, que os dois só
gravariam em 1994.
—
Zé era uma figura ímpar. Fomos fazer um show na Unicamp a convite do (dramaturgo)
Chico de Assis e ele me apareceu sem violonista, pois sabia que eu faria show e
que sabia todas as suas músicas— recorda-se Lyra.
Da
geração de sambistas que se projetava na Lapa no começo dos anos 2000, João
Cavalcanti (que abre hoje a série do CCBB hoje, em show com seu trio e a
cantora Fabiana Cozza) observa que Zé Kéti “logrou fazer com que suas crônicas
alcançassem ouvidos que eram alheios a ele”:
—Eu
cansei de ver, na ocupação cultural da Lapa, a galera cantando “Acender as
velas” (que fala do doutor que “chegou tarde demais porque no morro não tem
automóvel pra subir”). Certamente essa galera, na qual me incluo, não passou
por aquilo que a letra diz. Mas a gente estava levando adiante uma voz que
tinha sido silenciada reiteradamente. As crônicas do Zé Kéti, infelizmente,
continuam muito atuais.
Em depoimento exclusivo ao GLOBO, cantor revê a sua vida com o mestre: ‘Eu sabia quando um samba era dele’
RIO
- “Devo tanta coisa ao Zé Kéti que você não tem ideia! Eu tocava violão, e,
onde quer que fosse, ele me requisitava. Era sempre ele cantando e eu
acompanhando. Eu sabia cantar muitos sambas seus, e, às vezes, quando a gente
ia nos lugares, ele pedia: “Canta um seu!”
Gravei
três discos com o Zé Kéti, com o grupo A Voz do Morro. Para o primeiro dos LPs,
fiz um samba com o Zé Cruz, que tocava chapéu de palha. Cantei e o técnico de
som perguntou qual era meu nome. Eu disse “Paulo César”, e ele achou que isso
não era nome de sambista! Alguns dias depois, eu abro o jornal e está lá: Paulinho
da Viola. Foram o Zé Kéti e o Sérgio Cabral que resolveram inventar essa
história.
O
Zé era uma pessoa extremamente generosa, nunca vi se aborrecer com alguém. E,
qualquer samba do Zé Kéti que se cantasse, eu sabia que era dele. Toda melodia
dele tinha um fraseado muito pessoal, umas diminutas que eram só dele.
O Zé era um compositor de mão cheia, eu tenho prazer de cantar seus sambas. Ele dizia que eu era o seu pupilo. E era verdade. Quando o Zé estava muito doente, eu fui ao hospital. Ele estava deitado, de olhos fechados, e o médico pediu para que eu tentasse falar alguma coisa. Eu disse: “Zé, sou eu. Sou eu, Paulinho, seu pupilo.” Ele abriu um pouco os olhos e não disse nada, mas eu vi correr uma lágrima. E é claro que eu também chorei.”
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