A
vida pós-presidencial de Donald Trump não será menos desviante das normas e da
tradição política do que seus anos no poder. Com apenas 13 meses de intervalo,
encerrou-se ontem o segundo processo de impeachment que o alcança na
aposentadoria em Mar-a-Lago. Desta vez, a acusação foi por “incitamento à
insurreição” de sua horda de militantes armados, que desembocou na selvagem
invasão do Capitólio de 6 de janeiro. Atiçado pelos longos meses de retórica
incendiária do comandante-em-chefe, o bando tentara impedir a ratificação
burocrática, pelo Legislativo, da vitória eleitoral de Joe Biden. Naquele surto
de terrorismo messiânico a peito aberto, com torcida na Casa Branca, viu-se a
face do horror possível.
Os democratas que impulsionaram esse impeachment nº 2 sabem fazer contas. Sabiam, portanto, da dificuldade de obter junto à geleia desfibrilada de senadores republicanos os votos necessários para a condenação de Trump. Talvez por isso, ao longo de 14 horas, apresentaram seus argumentos de acusação visando a atingir também duas audiências cruciais, ambas fora do plenário: a opinião pública mundial e os anais da história. É essa minuciosa reconstituição dos fatos que passará a constar como registro oficial, indelével, da primeira tentativa de sedição de um presidente dos EUA contra as leis democráticas do país.
Absolvido
de impeachment pela segunda vez, o cidadão Trump ainda é capaz de causar
grandes estragos à nação, avalia seu sucessor. Biden já sinalizou que quebrará
uma norma de cortesia e confiança republicana em vigor desde o século passado:
não franqueará ao antecessor aposentado o privilégio de receber o boletim
diário ultrassecreto reservado ao chefe da nação. O famoso PDB (sigla para
President’s Daily Briefing) é a compilação de informações e análises sobre
segurança nacional preparada a cada 24 horas para o presidente. Entre as
centenas de relatórios diários produzidos pelas 19 agências de inteligência dos
EUA, apenas o PDB é elaborado para um único cliente — o comandante-em-chefe. E
não chega a 10 o número de altos funcionários com acesso a seu conteúdo.
Talvez
o mais célebre PDB de todos os tempos, tornado público em 2004, tinha por
título “Bin Laden determinado a atacar nos Estados Unidos”. Fora dirigido ao
republicano George W. Bush, 43º ocupante do cargo, com data de 6 de agosto de
2001. Deveria ter recebido a atenção que merecia. Pouco mais de um mês depois,
os ataques de 11 de setembro derrubariam as Torres Gêmeas e colocariam o país
de joelhos.
Além
do PDB convencional, um analista em carne e osso também aponta ou esclarece
algum outro elemento-chave do boletim, na suposição de que o informe já tenha
sido lido. Suposição frustrada no caso de Trump. Ao longo de seus quatro anos
no poder, ele nunca demonstrou interesse pela papelada. Simplesmente não tinha
paciência para ler, além de não distinguir o que vinha assinalado com um “S” (de
secreto). Colocava-se acima das picuinhas de segurança nacional para poder
impressionar seus pares mundiais, arrostando segredos.
Suas
transgressões foram inúmeras. Certa vez, no próprio Salão Oval, compartilhou
com o chanceler russo uma peça de inteligência ultrassecreta sobre o Estado
Islâmico, produzida por Israel; doutra vez, copiou com celular não
criptografado a raríssima imagem obtida por satélite de uma base de lançamento
de foguetes do Irã. Sem contar as célebres reuniões com a raposa russa Vladimir
Putin, sem a presença de qualquer assessor. Numa delas, Trump chegou a
confiscar as anotações dos intérpretes, fazendo com que os EUA não tenham
qualquer registro do que ali foi falado.
Biden
avaliou tudo isso, além do que chamou de “comportamento errático” do
antecessor, para não estender ao cidadão Trump acesso a esses briefings,
tradicionalmente disponibilizados a todo ex-ocupante do cargo. Atualmente,
tanto Jimmy Carter como Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama têm passe
livre aos PDBs. Isso porque a utilidade da cortesia e da confiança interessa às
duas partes. Não é incomum a Casa Branca recorrer a presidentes aposentados
para missões especiais no exterior, conferindo-lhes uma representatividade
oficiosa, sem precisar ser oficial. E, quando a viagem é de caráter privado,
todo ex tem interesse em saber se marcou encontro com alguém que anda sabotando
a política dos EUA. Também lhe interessa estar atualizado com os bastidores de
negociações em curso, para não dizer besteira.
À
luz do currículo que deixou na Casa Branca, o cidadão Trump não preenche nenhum
requisito dessa confiabilidade. “Todo ex-presidente é, por definição, um alvo e
representa um risco. Mas o ex-presidente Donald Trump é particularmente
vulnerável a más intenções por parte de maus atores”, alerta Susan M. Gordon,
que, na qualidade de vice-diretora de Inteligência Nacional entre 2017 e 2019,
participou de incontáveis briefings com o chefe.
Pela
primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente é visto como risco potencial
à segurança do país. Sua teia mundial de negócios e dívidas o tornam tão
vulnerável a chantagem quanto um espião com esqueletos brabos no armário. Sem
falar no risco de ele fazer uso indevido por conta própria, com material tão
valioso em mãos.
Melhor não arriscar. O cidadão Trump continua radioativo em seu próprio país. Sua militância radical também.
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