Como
brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Ir às ruas para uma
festa cujo clima depende de aglomeração seria uma espécie de suicídio coletivo
O
carnaval sempre foi um momento de inversão de papéis, de questionamento das
normas, de fuga do padrão da vida cotidiana e da libertação da repressão. Neste
ano, não. Ainda vamos levar algum tempo para ter a verdadeira dimensão do que
está ocorrendo, mas, talvez, o carnaval deste ano seja um momento de choque da
dura realidade, que é a crise sanitária pela qual o mundo está passando,
agravada pela incompetência e pelo negacionismo do governo. Oxalá, no próximo
carnaval, a maioria da população esteja imunizada contra a covid-19.
No
começo da pandemia, imaginava-se que o carnaval de 2021 seria um dos maiores de
todos os tempos, com a população indo às ruas se divertir, superada a peste.
Estaríamos vivendo momentos felizes, de muita contestação aos tabus da nudez e
da sensualidade, de ironias e críticas escrachadas aos governantes e, como não
poderia deixar de ser, ao presidente Jair Bolsonaro. Feminismo, racismo,
diversidade, exclusão, os temas caraterísticos do debate contemporâneo, numa
sociedade pluralista e democrática, estariam sendo tratados com bom humor e
muita sagacidade pelo povo nas ruas, cantando marchinhas e sambas.
Por incrível que possa parecer, o carnaval — essa festa tão desvairada — também é um momento de conscientização da população. É quase impossível na vida de um brasileiro não ter visto um desfile de escola de samba, não ter saído num bloco ou participado de um baile de carnaval no qual não houvesse ruptura ou transformação de costumes. É uma festa muito ambígua, na qual a fuga da realidade funciona como um espelho da sociedade, quando a velha senhora que passa roupa para fora se veste de luxuosa baiana, a madame vira figurante numa ala de escola de samba, o jovem desempregado brilha na bateria, a socialite leva uma bronca do bombeiro hidráulico por atrasar o desfile e o galã da novela arrisca um desengonçado samba no pé, sendo ele mesmo, e não o seu personagem.
O
carnaval substituiu o entrudo, que era uma festa embrutecida, na qual o povo
tomava as ruas para jogar farinha, baldes d’água, limões de cheiro e até lama e
areia uns nos outros. Ou seja, um avanço civilizatório. Roberto DaMatta, o
antropólogo estudioso dos foliões e dos malandros, sempre destacou que o
carnaval não é apenas um momento de alienação da realidade, é um espaço de
transformação dos padrões da sociedade. O Rio de Janeiro, quanta ironia, teve
um prefeito que não gosta de carnaval e não conseguiu se reeleger. Temos um
presidente da República que também não gosta e que, talvez, se regozije pelo
fato de o povo não ter tomado as ruas para fazer troça das autoridades e de si
próprio.
Não
é privilégio de cariocas e fluminenses. No Distrito Federal, a covid-19 matou
4.198 pessoas, de um total de 247 mil infectados; oito vezes mais do que
acidentes e homicídios. Em Belo Horizonte, foram 16,5 mil mortes, de um total
de 798 mil infectados. Em São Paulo, 55 mil mortes, com 1,9 milhão de
infectados. Na Bahia, 10,6 mil mortos para 623 mil infectados. Em Pernambuco,
10,6 mil mortos para 277 mil infectados; no Amazonas, são 9,7 mil mortos para
292 mil infectados. Estamos vivendo a rebordosa das campanhas eleitorais e das
festas de fim de ano.
Como
brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Agora, com a segunda onda da
pandemia, ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração e contato
físico seria uma espécie de suicídio coletivo. Por isso, mesmo que a festa seja
em casa e nas redes sociais, neste ano, o carnaval não valeu. Melhor ficar em
casa, cantar A Jardineira e pôr fogo na camisa amarela, como aquele folião de
raça de Ary e Elizeth, na quarta-feira de cinzas.
PS: até quinta-feira!
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