Além
da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre de quem manda
Dias
difíceis estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não
me posso queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios.
Isso é possível... para quem tem casa, como eu. E os que não a têm, ou a têm
precária, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e,
diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da
política?
O
bichinho persistente, o novo coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade,
jovens ou velhos, ricos e poderosos tanto quanto pobres e sem alavancas de
poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se
aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por mais confortável que
seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.
Mas
não desanimemos. Se algo o tempo ensina, é como diz o velho ditado: não há mal
que sempre dure nem bem que nunca acabe.
Às
vezes, raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra
vez! É o Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a
Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim?
Tratava-se da prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados
que o apoiavam, para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual
projeto.
Era o habitual. Mas vale a pena. Sem democracia é pior: a barganha, quando existe, não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.
Digo
isso não para referendar o que está acontecendo (nem sei de fato), e sim para
dizer que é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta
de liberdade. Mas é preciso lutar. Por mais que se “entenda o jogo”, é
necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se
limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.
Ainda
assim, com o peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e
baixos do poder, não deixa de ser triste ver isso a que estamos assistindo: o
poder, nu e cru, com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se
imagine que “a mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de
mudança de comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a
perder de vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não
é feita só com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isso
aparece dá vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.
Só
que ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse
público”. Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o
interesse público desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço,
os fatos falam mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em
nossas plagas, comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer
menos), é que nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que
interesses. Será? Espero, mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor
olhar para o que, apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em
liberdade, em contraposição ao que é feito em regimes autoritários, por mais
“fazedores” que sejam.
Espero,
apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de
que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal,
continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de
quais e para quê) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma
nova onda de crescimento da economia. E, por favor, sem esquecer que a tão
falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me a má
palavra) vontade política.
E
isso – a tal vontade política – é necessário em qualquer forma de poder. A
diferença entre elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica
sabendo o que acontece, pois a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele
pode reagir nas eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder
mandam mais “à vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.
Não
convém, portanto, apenas se recolher. Ao contrário, já que pelo menos temos
liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro da lei, o poder de
escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que
nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de
vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca, precisamos de lideranças. Na
política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem
simboliza um sentimento.
Não
escrevo para me consolar, nem para consolar os leitores. Creio que é assim
mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras
de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço,
de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando, além da pandemia, temos de
vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais forem, tenham sido ou vierem
a ser “los que mandan”.
Livremo-nos
ao menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja
exercendo-o, seja sofrendo-o.
*Sociólogo, foi presidente da República
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