Cultivo
o hábito, hoje meio fora de moda, de avaliar, de saída, a posição de políticos
e partidos pelo que eles declaram em público. A declaração tem valor em si,
porque – salvo em casos limite, devidamente comprovados, de desprezo pela razão
e uso contumaz da mentira - compromete o declarante, além de provocar ações de
terceiros, que a tomam como baliza. De
modo complementar, fazer reflexões para avaliar se estão sendo verazes, usando,
como evidências, fatos e informações cruzadas de outras fontes, mas sempre
pondo-as na condicional, sem fazer conjecturas passarem por veredictos. Pior do
que a benevolência acrítica é o criticismo imprudente. Por isso, parto da entrevista
concedida, pelo presidente nacional do partido em foco, ao jornal Folha de
São Paulo, no último dia 3.
O título da matéria é “DEM não vai com extremos em 2022, mas não posso descartar agora estar com Bolsonaro, diz ACM Neto”. Quem foi além do título e leu a entrevista, viu que essa não foi uma declaração da iniciativa do entrevistado e sim uma resposta sua a uma pergunta direta do jornal. Leu também, no restante da mesma resposta, uma pergunta feita pelo político baiano: Qual Bolsonaro vai ser? O dos dois últimos anos que passaram? Não queremos. Agora, haverá um reposicionamento? Para a construção de algo mais amplo, que não fique limitado à direita? Não sei.” O título da matéria reproduz o núcleo da resposta e destaca o que nela suscita mais polêmica. O contexto da polêmica é a divisão do DEM na disputa da Câmara dos Deputados, fato que já vinha sendo interpretado, predominantemente, nos meios de comunicação, sob a chave da “traição”, da maioria da bancada e do presidente do partido, ao deputado Rodrigo Maia. Como estratégia jornalística, tudo certo, o entrevistado perderá tempo em reclamar.
O
uso político da notícia-título, nos dias subsequentes, tem sido intenso e sem
alusão ao complemento da resposta do entrevistado. Soltos os freios, as
especulações abundam. Segundo elas, o presidente do DEM já indicou o mesmo
virtual ministro para as pastas da Educação e da Cidadania, já está cotado para
vice de Bolsonaro e esse último pode se aboletar no DEM. Alguma terminará
acertando o alvo porque o que vale para qualquer partido não vale do mesmo modo
para seus membros, individualmente. O padrão de independência política declarado
pelo DEM com base nessa premissa não é contestado pelo palácio. Prova isso a
permanência de quadros do partido em ministérios desde 2019, inclusive durante surtos
milicianos do capitão, mesmo quando Mandetta, Maia e o próprio Neto se
posicionavam, pontualmente, contra várias posições e iniciativas suas. Por que
seria diferente agora quando Bolsonaro faz uma performance de político
“normal”?
O
padrão seletivo das especulações tem favorecido quem aposta em racha definitivo
do DEM, animado pelo fato de destacados quadros do partido assumirem hoje uma
nítida atitude de oposição, enquanto outros quadros se declaram independentes e
outros ainda ocupam ministérios. Para se ter uma ideia da complexidade do
quadro, é preciso ver que, além de tradicionais políticos regionais e daqueles da
clientela do varejo, que não particularizam qualquer partido, dada a sua
difusão em diferentes quadrantes ideológicos (os partidos do chamado centrão
não se diferenciam por terem esse tipo de político mais que outros partidos e
sim por quase não terem outros tipos além dele), convivem, no DEM, expressões carimbadas
de várias espécies de centro, direita e centro-direita.
Sem
pretender ser exaustivo, cito figuras hoje facilmente consideradas no chamado centro
liberal democrático (como Rodrigo Maia e mais recentemente Luiz Mandetta), um
exemplar de direita sem conexão fácil com qualquer centrismo (governador
Caiado), um liberal ativista ao molde de Kin Kantaguri; um pragmático conectado
com a extrema direita (Onix Lorenzoni), além de uma expressão política do agro
negócio, a ministra Teresa Cristina e da mais recente aparição, na primeira
cena da política, como presidente do Senado, de Rodrigo Pacheco, quadro de um
conservadorismo moderado que lembra o estilo Marco Maciel, duas vezes
vice-presidente da República, com a aparente vantagem de, no mineiro, a moderação sobressair mais do que o
conservadorismo.
Quem
quer analisar esse conjunto de crenças, interesses e configurações regionais,
sem apenas fazer política com sua crise, precisa evitar etiquetas puras, colocar
estratégias jornalísticas entre parênteses e prestar atenção às palavras de quem
preside esse intricado mosaico, ele mesmo um caso complexo, herdeiro de uma
tradição conservadora e pragmática que interagiu com autoritarismo e democracia
e, com o tempo, foi adquirindo perfil liberal em trânsito na direção do centro,
sem com isso perder seu pragmatismo.
Combinemos:
se o presidente nacional do DEM dissesse em público que o nome de Bolsonaro
está descartado como opção para 2022, essa não seria uma fala de oposição?
Motivos não faltam para se fazer oposição no momento, mas acontece que o DEM
não é oposição. É ambivalente. Uso essa palavra sem a conotação pejorativa que
a ela se costuma dar, como se fosse um desvio de conduta política. Não é.
Frequentemente, a ambivalência é uma atitude política positiva, que corresponde
à ambiguidade de uma situação concreta. Nesses casos, político que quiser se
livrar dela, vai parar na doutrina ou na demagogia.
Pode-se
argumentar - e a meu ver com bastante razão - que o fator Bolsonaro desidrata o
ambiente político da ambiguidade que poderia justificar uma ambivalência de
posição. Tolerar ataques extremistas a granel sem um enfrentamento firme enfraquece
moralmente a democracia porque vai rebaixando as crenças da sociedade em
relação às instituições. Por outro lado, o fato de o extremismo ter chegado ao
palácio e a isso juntar-se uma pandemia cria uma situação perigosa, levando a
um argumento diferente, que também tem sua razão: é preciso defender a
democracia dos ataques extremistas, mas também haverá risco institucional para ela
se não se agir com moderação quando o presidente extremista ainda tem apoio
popular e construiu uma base no Congresso. É fato que o DEM vem seguindo essa
linha prudencial, desde o começo do governo Bolsonaro.
Nos
limites da habilidade e clareza possíveis, o presidente do DEM disse que o
Bolsonaro desses dois anos (o Bolsonaro real) não terá seu apoio, que o partido
não quer nada com extremos nem seguirá algo que se limite à direita. Mas que em
nome das prioridades do país, no contexto de pandemia, é preciso mediar e
reduzir o conflito político e adiar o momento de opções eleitorais, para que se
consiga clima de governabilidade e cooperação. Trata-se de um reposicionamento?
Penso que não. É a mesma política de conciliação que o DEM vem pregando e
praticando desde que o governo começou. Com essa estratégia conduziu-se na
Câmara, sob o comando de Rodrigo Maia, no Ministério da Saúde dirigido por Luiz
Mandetta e, em contexto mais limitado, com o próprio ACM Neto na prefeitura de
Salvador, inclusive atuando em cooperação com o governo estadual adversário,
durante a pandemia. Política nacional de conciliação que se combinou com
alianças ao centro e até com a centro-esquerda nas eleições de 2020. E que se
expressa agora na base de alianças que elegeu Rodrigo Pacheco presidente do
Senado e na sua postura política.
Afinal,
não era exatamente essa política que, semanas atrás, chamei, elogiando sua
eficácia, de “estratégia maricas”, a mesma política que levava o então
presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a ser acusado de conivente com Bolsonaro?
Assim como não estava de acordo com essa crítica, penso que também não procedem
as que hoje se dirigem ao presidente do DEM. Adesismo ao governo e estratégia
maricas podem ter pontos de intersecção (eis a ambivalência) mas não são
sinônimos. É possível discutir razões que passaram a levar quadros do DEM, como
Maia e Mandetta, a preferirem o caminho aberto da oposição e até a flertarem
com a ideia do impeachment. Diante da derrota da campanha de Baleia
Rossi na Câmara, resolveram alterar a conduta, talvez até mudar de estratégia. Juntam-se à oposição, achando ser esse, nas
circunstâncias seguintes à derrota na Câmara, caminho melhor para derrotar
Bolsonaro e seu governo. Pode ser que estejam mais certos do que ACM Neto. Mas
o reposicionamento é deles e não do partido ou do seu presidente.
Até
onde posso imaginar a profundidade das feridas, o DEM retirou-se do bloco de
apoio a Baleia Rossi porque não foi possível chegar a um acordo com Maia em
torno do partido permanecer no bloco e aceitar-se a liberação da bancada,
sabendo que a maioria ficaria com Lira. Foi essa a solução achada no PSDB, que
também foi majoritariamente para Lira. Com todo desacordo interno, é no mínimo
duvidoso que o DEM tenha virado centrão, ou tenha rompido com a perspectiva de
frente ou de frentes democráticas. Esse risco existe, é claro, mas parece longe
de ser favas contadas. O desfecho na Câmara foi de afastamento por razões
diversas, que incluem o fisiologismo político, mas a ele não se restringem
(tratarei disso no artigo da PD). Foi derrota importante da frente democrática
para a qual as defecções no DEM decerto contribuíram. Mas a larga margem da
derrota indica que a avaliação das causas não conduz a explicações simplórias. Muito
menos a se considerar o DEM território inóspito para, por exemplo, uma eventual
candidatura presidencial de Luiz Henrique Mandetta surgir e ter boa
receptividade no centro e áreas da centro-esquerda.
Chego
assim ao último ponto que quero abordar neste texto. O ex-ministro da Saúde tem
dado sinais bem recentes de que interpreta o cenário político de modo diferente
do ponto de vista que estou tentando aqui expressar. Fala-se que, assim como Rodrigo
Maia, estaria considerando deixar o DEM e ingressar em algum partido menor que
abrace a sua pre candidatura. Paciência! Se acontecer, não será a primeira nem
será a última vez que discrepância parecida ocorre entre as perspectivas de um ator
e de um espectador.
Tentarei
ser sintético. Militares do palácio e o centrão estão oferecendo a Bolsonaro
uma chance de se customizar para 2022. Conseguirão baixar sua rejeição e
torná-lo competitivo numa eleição em dois turnos (algo que, hoje, não é)? Não
sei, ninguém sabe. Mas esses agrupamentos governistas, não necessariamente
bolsonaristas, parecem dispostos, mais uma vez, a maquiar o miliciano, agora
com mais decisão. Dando certo, mergulharão
o país numa aventura mais radical de extrema direita, após as eleições. É
possível, como já disse nesta mesma coluna, que a customização tenha um sentido
de ultimato. Batendo fofo, a opção é usar a posição institucional de Arthur Lira
pra abrir caminho a uma espécie de Rússia, com Mourão, que passa por
estraçalhar, casuisticamente, a Constituição. Aliás, se o estupro da Carta
avançar até o sistema eleitoral talvez dê pra seguir com Bolsonaro mesmo,
desafiando a sua rejeição. A solução russa não faz questão de patente.
Quais
as evidências de que essa é, ou possa vir a ser, a aposta do DEM? Vamos pensar
se é sensato, sem tais evidências, supor que tenha esse horizonte quando se
nega a sair da posição de independência para a oposição. Vejo mais evidências
de que aposte em ser a alternativa política e eleitoral da reconciliação do
país, possível quando a maquiagem improvisada de Bolsonaro borrar. A incerteza
maior que a novíssima conjuntura traz é que essa alternativa pode se tornar
inviável, se as saídas do partido de Maia, Mandetta e do vice-governador de São
Paulo se confirmarem e se derem em tom de rompimento.
Claro
que a Bahia também está no meio disso. A negação dessa suposição intuitiva foi um
momento em que ACM Neto não pareceu veraz. Como qualquer político, tem
aspirações e ambições pessoais. Quer ser
governador e para isso é bom estar nacionalmente junto do PP e do PSD, aliados
do PT na Bahia e, também, perto de centros gerenciadores de decisões governamentais.
Mas isso não quer dizer que pretenda correr o Estado com Bolsonaro a tira colo.
Quem conhece minimamente o que se passa na Bahia pode avaliar o que ele teria a
perder com isso. A esquerda baiana bem o sabe e por isso esfrega as mãos para
que esse casamento de raposa aconteça, ou pareça que vai acontecer. O
pragmatismo evidente do presidente nacional do DEM também não quer dizer que sacrificaria
o papel mediador do partido que preside nacionalmente por uma aspiração
provinciana. Vou concluir com isso.
Aparências
não devem enganar. A tradição política que o DEM herdou na Bahia apela, em alguns
momentos, a um discurso bairrista. Mas é uma tradição baiano-nacional. Escrevi
um livro sobre origens e implantação do carlismo (“Tradição, autocracia e
carisma: a política de Antônio Carlos Magalhães na modernização da Bahia,
1954-1974” – Ed. UFMG), dizendo isso.
Foi publicado em 2004. A atualização sairá este ano e cobrirá o auge e o
declínio do seu poder. O DEM, na maré vazante, aprendeu a manejar seletivamente
sua tradição. Na Bahia, caminhou devagar em direção ao centro e hoje já se
entende com parte da esquerda não governista. E não havia escolha, já que os
partidos de direita e centro direita, satélites do PFL no tempo de ACM,
tornaram-se (ainda são) aliados do PT, no Estado. O car1ismo acabou. Resta a
memória, emulada por diversos, até opostos, partidos. Boa parte da Bahia sabe
disso. Setores da imprensa nacional precisam se despedir do avô.
Se
há uma percepção que vai da direita democrática à esquerda, é a de que
Bolsonaro e democracia pluralista não combinam. O presidente nacional do DEM é um
liberal pragmático, mas não um político de voo solo. Irá aonde o campo liberal
brasileiro for. Não há sinais, até aqui, de que esse campo pode seguir na
contramão da democracia.
*Cientista
político e professor da UFBa
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