Tendo estudado Ciência Política
na Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e se doutorado na
Unam (Universidade Nacional Autônoma do México) ainda nos tempos do exílio,
Raimundo por quase dez anos seria professor da Universidade Federal da Paraíba
(em Campina Grande), transferindo-se depois para a Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, especificamente para o CPDA (Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade).
No CPDA, a sala do Raimundo,
atulhada de livros e papéis de todo tipo – ele que, entre outras coisas, se
autointitulava um “revisteiro” e era um dos principais responsáveis pela
revista Estudos Sociedade &
Agricultura –, a sala do Raimundo, dizia, tinha na parede um retrato de
Ivan Ribeiro, precocemente falecido com o ministro da Agricultura, Marcos
Freire, em desastre de aviação. Ivan, outro professor do CPDA como ele, outro
singular comunista como todos nós, pouco afeito a proclamações revolucionárias
e mais envolvido na aposta de uma lenta e constante democratização dos
processos societais. Havia naquele retrato do Ivan, pendurado na salinha do
Raimundo, um sentido altíssimo de continuidade e de fidelidade, que se impunha
de modo forte, mas silencioso e sem afetação. Era preciso continuar o Ivan,
assim como se devia preservar/superar o legado de gente como Alberto Passos
Guimarães, Nelson Werneck Sodré e, em especial, Caio Prado Jr.
O velho Partidão havia passado e
se impunha aceitar realisticamente este fato. Organismos históricos nascem,
vivem e num certo momento perdem a razão de ser, não importa a marca que tenham
deixado em momentos críticos da História ou que esta mesma História não possa
ser contada sem eles. No entanto, para Raimundo o pecebismo sobrevivia ao partido e devia seguir de pé, inspirando a
ideia da centralidade da política, a
necessidade vital de fazer política
para além de rígidas demarcações classistas, mas sempre em benefício dos
setores subalternos que dependem essencialmente das formas democráticas para
ter condições dignas de vida material e espiritual. E o objetivo de fazer
sobreviver uma tradição toda atenta à política só poderia ser o de levar a
esquerda, ou a nossa parte da esquerda, a sair de guetos minoritários e a
participar plenamente da vida nacional, influenciando-a no sentido semelhante
àquele apontado, décadas a fio, por Caio Prado Jr. – a nacionalização da
economia e da sociedade, a internalização dos centros decisórios, o atendimento
das carências da maioria da população. Tudo isso num contexto de reformas
graduais e incessantes, a serem conduzidas dentro da legalidade e da ordem
constitucional, fora das quais, para Raimundo, pode até haver salvadores da
pátria, mas nunca salvação nem risorgimento
nacional.
O lema gramsciano, aqui, não é por acaso. Raimundo era devotado leitor do famoso Caderno 19 do pensador sardo, um caderno voltado para as vicissitudes da formação tardia da nação italiana, conduzida, como se sabe, pelos conservadores do “partido cavouriano”. Por terem uma consciência mais elaborada de si mesmos e de todos os demais atores, eram capazes de se pôr à frente da unificação e, por isso mesmo, dirigir a ala esquerda do movimento segundo os ditames da revolução passiva – categoria sofisticadamente revista e atualizada por Gramsci, a partir de processos de transformação frustrados total ou parcialmente, como foi o caso do próprio Risorgimento. Para Raimundo, no entanto, havia aqui uma preciosa sugestão inerente à possibilidade de trocar o sinal daquele tipo de revolução, transformando-a de signo de fraqueza das forças mudancistas em sabedoria tática e visão estratégica, em capacidade de estabelecer “alianças pluriclassistas”, que, ao fim e ao cabo, implicariam uma ideia bastante inovadora da mudança social contemporânea. O socialismo, para usar a palavra incandescente, agora passaria a ser entendido como “um processo desdramatizado de reforma da sociedade, que se construiria numa dialética complexa e de muitas mediações entre gradualismo e ruptura, a partir da plena aceitação da alternância no poder, em processos falibilísticos de avanços e recuos” (Caio Prado Jr. na cultura brasileira, Rio de Janeiro, 2001, p. 262). Se bem observarmos, nesta e em muitas outras passagens o contido “marxismo da revolução passiva” sustentado por nosso autor era, e ainda é, uma revolução copernicana muito distante de ser plenamente entendida no campo progressista, que não raro se atrapalha com caudilhos e miragens rupturistas.
Eis que, quase sem nos darmos conta, já estamos em pleno território povoado pelas obsessões pungentes de Raimundo: Gramsci e o Risorgimento, Caio Prado e o agrarismo reformista, este último a se infiltrar paulatinamente na agenda do PCB, apesar da posição muitas vezes outsider do historiador paulista em relação ao partido “de que não saiu e não foi expulso”. Inúmeras vezes, em artigos e ensaios, Raimundo debruçou-se sobre o sindicalismo rural estimulado pelos comunistas do PCB, valorizando-o como o caminho real para mudanças profundas, mais até do que o choque frontal e muitas vezes violento em torno da propriedade da terra. Tanto no intelectual outsider como no seu partido, Raimundo capturou os essenciais pontos de contato apesar das estridentes polêmicas e, muito especialmente, apesar da terminologia datada e da ortodoxia revolucionária comum aos atores individuais e coletivos daquele tempo. Uma sugestão bastante interessante neste sentido é a de que, em Caio Prado, o PCB vai recolher já nos anos 1950, de modo um tanto oblíquo ou subterrâneo, as ideias que dariam substância ao seu agrarismo sindical, à valorização do trabalho no capitalismo brasileiro e à possibilidade de um singular “socialismo de reformas capitalistas”, que afinal unissem nação e povo, economia e sociedade, sepultando de vez os restos renitentes do passado colonial. O “Ocidente” – afirmou certa feita Raimundo – teria tido seu momento inaugural no PCB por meio de Caio Prado Jr., uma hipótese ousada e merecedora de renovada atenção (para esta afirmação e as antecedentes, cf. op. cit., p. 41).Por último, mas não em último
lugar, entre as obsessões que configuraram o pecebismo do querido amigo, lugar de relevo particularíssimo cabe à
estratégia da resistência democrática no pós-1964, derivada diretamente do
“Manifesto de Março” de 1958. Em se tratando de um partido comunista clássico,
não há como desvincular o documento de 1958 dos acontecimentos que dois anos
antes haviam abalado o mundo comunista, com a denúncia dos crimes de Stalin – e
a mitigada denúncia do stalinismo – durante o célebre XX Congresso do Partido
soviético. O PCB, pequeno mas influente, semiclandestino ou apenas tolerado,
também daria início à própria desestalinização e, não por acaso, a um movimento
mais acentuado de enraizamento na política local, delineando, entre altos e
baixos, sua fisionomia de esquerda legalista e positiva (para lembrar a expressão de um excepcional personagem,
San Tiago Dantas).
Torneios retóricos à parte (como
ninguém ignora, a linguagem é a última roupagem de que conseguimos nos despir...),
aquele “Manifesto” supunha uma compreensão da “revolução brasileira” como um
processo baseado em “etapas”, em reformas incessantes, sem desconhecer, antes
valorizando, a legalidade afirmada pela Constituição de 1946. Ora, no pós-1964,
a consequência lógica desta nova posição, adotada não sem muitas e variadas cisões
e contradições internas, só poderia ser uma estratégia avessa às armas e aos
grandes gestos, enganosamente miúda, fundamentada em iniciativas como a Frente
Ampla (1965), a participação eleitoral e a recusa do voto nulo, o entendimento
deste mesmo voto como momento superior de luta. Assim, uma parte da esquerda –
exatamente, a esquerda comunista tradicional, ritualmente demonizada pelo
regime militar, como ocorria, por exemplo, nas comemorações do desastrado putsch de 1935 – surgia em tal
dificílimo contexto com uma aguda consciência do seu papel e, também, do papel
que caberia aos liberais e aos democratas em geral, por mais que isso lhe
valesse censuras e incompreensões “à esquerda”.
Tratava-se, em desdobramento
natural do “Manifesto”, de contribuir para a derrota política do regime – não para a derrubada do capitalismo –, propugnando objetivos factíveis e
essenciais para a reestruturação da vida política, a saber, a anistia ampla,
geral e irrestrita, bem como o chamado a uma Constituinte, que reconciliasse o
País consigo mesmo e deixasse para trás a existência de homens e mulheres
perseguidos e de correntes e partidos clandestinos. Este, em essência, era também
o pensamento político de Raimundo, sua bússola constante, a estrela-guia jamais
negada. Por isso, posso afirmar com segurança que ele sabia de cor frases,
parágrafos e seções inteiras daquele “Manifesto”, verdadeira carta de alforria
do stalinismo e marco indicativo da vontade de transitar de um “partido-igreja”
para um “partido da política”, o que, a seu ver, tinha sido o último e
memorável feito do Partidão.
Esta derradeira e fundamental
obsessão de Raimundo – a frente única
ou, mais propriamente, a frente democrática
contra a ditadura – o fazia homenagear, em conversas, palestras e livros,
personalidades como Luiz Inácio Maranhão Filho, Marco Antônio Coelho e Armênio
Guedes, este último seu companheiro no exílio chileno até que viesse o golpe de
1973 e muitos anos depois objeto de um livro específico (O marxismo político de Armênio Guedes, Brasília/ Rio de Janeiro,
2012). Em Luiz Maranhão, o “cardeal” do PCB, Raimundo exaltava a capacidade de
diálogo com os católicos e até com as figuras mais altas da hierarquia, como D.
Paulo Evaristo Arns e D. Eugênio Salles, que, no entanto, não puderam salvá-lo
do suplício; e nos outros dois dirigentes, celebrava a capacidade de entender
em profundidade a política e de elaborar, sempre e invariavelmente, “a tática
das soluções positivas” adequada para as situações de impasse. Afinal de contas
– era o que Raimundo dava a entender com deliberada ironia –, ideias e
intelectuais, livros e professores, eleições e políticos é que haviam consumado
a derrota da ditadura, deixando-a imóvel e esgotada num canto do ringue,
enquanto liberais da mais alta estirpe, como Tancredo Neves e Ulysses
Guimarães, encaminhavam a transição e deixavam aberto o caminho para que todos
os brasileiros, com ou sem partido, com esta ou aquela filiação ideológica, ou
mesmo sem nenhuma filiação proclamada, participassem orgulhosamente do
renascimento – do risorgimento – do
País.
Nesta hora particularmente dura, em que a democracia corre riscos um pouco por toda parte e, de novo, também por aqui, o discreto Raimundo vai fazer muita falta. Já está fazendo. Lembro-me agora, ao pensar na sua figura e no seu modo de ser, do protagonista do Rasga, coração, de Vianinha. O herói sem pose, o herói anti-herói: obstinado, constante, modesto. Vem ainda à memória um velho poema de Brecht segundo o qual era de lamentar que os comunistas, lutando por um mundo em que triunfasse a amizade, nem sempre tivessem tido tempo de serem amigos entre si, endurecidos como estavam pela luta de classes. Este não foi o caso do Raimundo: fez e deixou amigos que dele se envaidecem e se recordam com carinho. Eu tive, muitos tivemos a sorte de encontrar o Raimundo nos meandros “do Partido” – um homem honrado, um intelectual decente, uma personalidade democrática, profundamente democrática. Não o esqueceremos.
* Tradutor, ensaísta, um dos organizadores das Obras de Gramsci, pela Civilização Brasileira, em 10 volumes. Editor de Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org) e da Esquerda Democrática (https://www.facebook.com/esqdemocratica/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário