quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Míriam Leitão - Por um ajuste sem granadas e jabutis

- O Globo

Ajuste fiscal não pode ser feito com a lógica de “colocar a granada no bolso do inimigo”. Não pode ser uma coleção de jabutis. Nem bodes. Mas é dessa forma que foi preparada a PEC Emergencial relatada pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC). Quem acha que é possível, no momento extremo que vivemos, fragilizar o SUS, acabar com o Fundeb? A PEC faz isso. E, de quebra, o ajuste que está sendo proposto pelo governo Bolsonaro acaba com duas fontes de financiamento da Receita Federal e assim torna mais fraco o órgão que arrecada e combate a sonegação.

A votação no Senado foi adiada. Ainda bem. A ideia original era votar a proposta, cheia de ardis e complexidades, em 48 horas. Seria hoje a votação do relatório apresentado na terça-feira. Neste governo e no meio de uma pandemia, quem sinceramente pode defender o fim das vinculações para a Saúde e Educação? O país quer e precisa de um SUS mais forte. O desafio de reabrir escolas públicas e recuperar o ano letivo perdido torna mais necessário o financiamento educacional. A proposta do governo é acabar com as vinculações nas três esferas administrativas, e para os dois setores. União, estados e municípios não teriam mais que cumprir o piso para educação nem o mínimo para a saúde.

A proposta ataca também a autonomia da Receita Federal, como contou no “Valor” de ontem Maria Cristina Fernandes. Com a supressão de um inciso, deixa de haver a vinculação de impostos para o financiamento das atividades de administração tributária. A vinculação foi introduzida numa Emenda Constitucional, a 42, de 2003, mas, segundo explicação de técnicos que eu ouvi, nem estava sendo usada. Isso porque a maior parte do financiamento da Receita vem do Fundaf, Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento de Atividades de Fiscalização. Ele foi criado pelo decreto lei 1.437 de 1975 e sobreviveu à Constituição de 1988.

— Todos os fundos estão vinculados ao Orçamento-Geral da União, mas a gente sempre podia, na hora dos cortes, dizer que tinha os recursos. Até porque se não pudermos fazer nossas atividades, o governo estará dando um tiro no pé. Sem arrecadação não se sai de crise fiscal. O problema é que o governo está acabando com todos os fundos e ainda por cima propôs o fim dessa vinculação —disse um técnico tributário.

Quando a vinculação foi aprovada em 2003, a Receita dizia que preferia não usar esse dispositivo. Mas agora, com o fim do Fundo, essa vinculação seria o plano B para ela se financiar. Se ela tiver que disputar recursos no Congresso vai encontrar muita gente torcendo para a Receita não fazer o seu trabalho.

Na famosa reunião ministerial, cujo vídeo foi divulgado pelo ministro Celso de Mello, o Brasil viu uma espécie de ressonância magnética do atual governo. Tudo foi visto lá. O ministro Paulo Guedes por exemplo falou da sua técnica de “colocar a granada no bolso do inimigo”. Ele se referia a ter incluído na transferência para os estados e municípios a exigência de não aumentar o salário dos servidores. A ideia era de fato boa, mas a grande resistência a esse ponto vinha do próprio presidente da República que queria dar aumentos para policiais e garantir o reajuste dos soldos dos militares. Por isso, só foi aprovada depois de garantidas as vantagens para os grupos protegidos pelo presidente.

Agora, de novo, houve vantagem para os favoritos de Bolsonaro. A isenção de impostos federais sobre o diesel por dois meses, anunciada pelo presidente para agradar caminhoneiros, custa R$ 3 bi. Terá que ser coberta com aumento de impostos. A Receita está com essa bomba na mão. Que imposto aumentar e que possa gerar receita este ano?

Ajuste fiscal dói. Nunca foi indolor. Cada avanço que o Brasil conseguiu foi difícil. Não pode ser feito no truque, no escondido. Não faz sentido propor mudanças permanentes em troca da aprovação de algo urgente e temporário, como o auxílio emergencial. Não pode incluir jabutis, nem bodes.

O auxílio será extrateto e fora da meta fiscal. Mas a PEC é apresentada como uma forma de dar um sinal de que o governo ajustará suas contas. O problema é que especialistas acham que, do jeito que está, ela contorna o teto de gastos, enfraquece a regra de ouro, propõe o fim do mundo na educação e na saúde e puxa a escada da Receita Federal. Em resumo, não há ajuste, apenas bodes, jabutis e granadas.

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