A
cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos
cancelados. Ninguém perde por esperar
Esta coluna é, como todas são, como tudo o que não é amanhã é, um eco do passado. São oito da noite de terça-feira, e, se o meteoro não atingiu o planeta entre agora e logo mais, Karol Conká terá sido eliminada do “Big Brother 21” com uma rejeição recorde, ou quase isso, porque afinal bater os 98,76% anteriores, do Nego Di, é difícil até para uma arquivilã de caricatura.
(Sim,
foi: 99,17%. Só mesmo eleições na Coreia do Norte atingem esse nível.)
Karol
Conká cabe como uma luva na clássica definição que o ministro Luis Roberto
Barroso pregou na testa do colega Gilmar Mendes, uma das joias mais perfeitas
da História do Brasil: ela é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o
atraso e pitadas de psicopatia.
Nem
o seu fã-clube aguentou, e desativou a conta que tinha criado para segui-la na
casa:
“Nós,
como fãs da carreira musical da Karol, decidimos criar esse perfil para
informar e acompanhar ela no BBB. Mas, devido a todos os acontecimentos dentro
da casa, percebemos que ela na verdade é uma pessoa horrível. Iremos desativar
a página e desejamos que ela se f*.”
Pronto, fãs, desejo atendido.
O
problema é que uma trama sem vilões perde muito. Ainda sobram vilões no “BBB
21”, mas nenhum com o talento para o papel da Karol Conká. Karol aparece na
tela e o público imediatamente se alvoroça, porque sabe que lá vem treta.
Karol
é cruel, falsa e fofoqueira — mas é inteligente, interessante e tem uma
capacidade de liderança inquestionável. É carismática e vistosa como a madrasta
da Branca de Neve ou a Cruela Cruel. Sabe plantar dúvidas nos corações, semear
a discórdia e ferir os outros. O mais fascinante é que faz tudo isso sem
perceber, convencida de que é boa gente e que não fez nada de mais. Fica
genuinamente surpresa quando alguém se queixa das patadas, e se exime de
responsabilidade moral com o argumento de dez entre dez pessoas grosseiras: “Eu
sou assim mesmo!”.
(Tiago
Leifert foi no ponto na eliminação ao questionar os brothers sobre quem são; e
foi cauteloso e gentil ao criar um colchão metafórico para atenuar o tombo
descomunal da Conká.)
O
“BBB 21” vai perder muito da dinâmica e da graça com a ausência da sister — mas
isso me perturba.
A
questão é: a que custo nos divertimos? Os participantes fazem questão de
frisar, continuamente, que o programa não passa de um jogo. Mas é um jogo
jogado por humanos reais, com os sentimentos de que dispõem.
Os
jogos do Coliseu romano também eram jogados por humanos, e também eram
considerados divertidos illo tempore.
O
que vai acontecer com Karol Conká?
Horrível
ou não, ela é uma pessoa real. Vê-la experimentar do próprio veneno só é
gratificante até o momento em que nos damos conta de que esse veneno é,
exatamente, o que nos causa tanta repulsa.
Pessoas
boas odeiam pessoas más por serem más, mas acham justificável serem más com os
maus.
Quem
somos, afinal?
A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar.
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