Apreendi
que somos humanos justamente porque somos contamináveis e mortais
E
contagiantes, dizia meu mentor, o pioneiro brasilianista Richard Moneygrand,
hoje isolado numa empesteada Manhattan. Em suas aulas, ele citava Rousseau e
Nietzsche, ampliando a apreciação de que o homem é um animal doente, justamente
porque não tem um destino prefixado. Sujeito e objeto de desejos e fantasias,
ele pode ser tudo de bom e de ruim.
Apreendi
que somos humanos justamente porque somos contamináveis e mortais. A
consciência da transitoriedade é o testemunho das nossas contaminações. Vivemos
em meio a múltiplos contágios e temos até receitas (como os casamentos, as
formaturas e os aniversários) para nos contagiar.
Sendo
onívoros e onipotentes, podemos ser super-heróis e deuses. Muitos de nós,
aliás, nascem humanos e morrem monstros.
O
processo de “humanização” veio do contato e da contaminação nas suas formas
construtivas da troca e do diálogo; e nas suas modalidades destrutivas da
guerra e das endemias. Aprender com o outro ou detestá-lo; tentar fazer como
ele, compreendendo, manipulando ou aperfeiçoando suas crenças é o nosso segredo
de Polichinelo – finalizava o mestre.
Relações
– contatos, juramentos, paixões e contratos – são contagiantes. “Diz-me com
quem andas e dir-te-ei quem és!”, dizia Goethe. A troca é a ponte que permite
estar com o outro sem sair de si mesmo. A grama do vizinho é sempre mais verde,
bem como – afirmava tio Marcelino – sua mulher...
Somos contagiados, mas queremos ser contagiantes como as celebridades que admiramos. O cerne da fama é a capacidade de contaminar e assim envolver os outros.
Nossos
tiques, nossas manias, fobias e predileções nos distinguem porque revelam
imunidades. Tenho amigos “vacinados” contra café, pão, leite e até mesmo a
saudável água de bica. Meu tio Silvio cantava: “Morte ao leite degradante /
Morte à água que enferruja / Salve a Brahma, edificante!”.
Costumes
e, acima de tudo, as línguas que falamos nos constrangem, mas há sempre espaço
para a “vacina” do aprendizado, da recusa ou do desvio. Daí os sotaques, as
gafes, e as abstinências reveladoras de que, mesmo sem ter consciência
democrática, já aceitávamos exceções sociais que são respostas aos excessos de
dentro ou de fora.
Tudo
isso sem esquecer a negação das pestes políticas conhecidas como
nacional-socialismo, stalinismo, os ibéricos salazarismo e franquismo e os
fascismos em geral, essas enfermidades extasiadas pela morte, cujo vírus é duro
de vacinar. O elo entre a contaminação político-ideológica e a peste é, desde o
Jardim do Éden, e de Albert Camus e George Orwell, patente.
Em
todo sistema, existem coisas que podem pegar. De onde vem a moda ou a gíria que
individualiza as gerações dentro de uma mesma sociedade? Ou a malandragem que
fura as regras e estabelece uma ética de ambiguidade?
O
que chamamos de “hábito” (ou praxe), esse berço de preconceitos, resulta de um
inexorável contágio. Quando dois contágios se encontram, há cataclismos físicos
e mentais. É o que ocorre quando você aprende desde criança a abraçar como
forma de afago e carinho, mas o vírus mortal demanda isolamento e distância.
Diante de receitas de vida tão contraditórias, que forma de contaminação
preferimos?
Para
nós, brasileiros, isolamento é “gelo”, abandono e exílio ou morte social. Na
América, ela é um valo, daí a teimosia em seguir regras. Formas de contaminação
opostas às habituais prenunciam desastres. É como aprender uma nova língua ou
viver com saúde sem esquecer a contaminação e a morte.
Quando
assimilamos um mínimo da doença, ficamos inoculados. A vacina contra o outro
(que promove incômoda ampliação ou redução da nossa humanidade) está em
compreender suas razões. Construir pontes é tão difícil quanto o amor – essa
doença-cura que nos perpetra humanos. Se, mesmo em escala menor, sofremos a
doença do outro, pois não viramos estrangeiros de nós mesmos, saímos da
dualidade de vê-lo como superior ou inferior para decifrá-lo como uma
alternativa. Essa é a vacina.
O
princípio dos epidemiologistas é o mesmo dos antropologistas. A gente só se
sente à vontade num outro sistema quando o assimilamos. Um mundo globalizado
requer uma humanidade extensiva, capaz de diminuir (ou até mesmo apagar)
fronteiras e sanar desigualdades. É preciso vacinar o mundo com o manto da
humanidade, inoculando nele as velhas moléstias racistas e nacionalistas.
Neste
nosso Brasil (que estaria acima de todos!), a índole igualitária da fila é um
problema porque os nossos fidalgos odeiam esperar e assim aplicam sem pudor o
costumeiro e antidemocrático “você sabe com quem está falando?” e furam a fila.
É o retorno de um velho dilema: a vacina liquida a doença, mas só nós –
brasileiros – temos a cura do mal-estar causado por uma ética de
ambiguidade.
*É
antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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